Novos Colonialismos: diálogos evanescentes em uma fronteira em movimento

Convido o leitor para uma reflexão crítica sobre direitos territoriais, cultura e meio ambiente nas relações internacionais referidas ao Brasil nas últimas décadas. Um fator preponderante, no âmbito destas relações, refere-se aos chamados “diálogos setoriais” entre o Brasil que se encontra de um lado e a União Européia e os Estados Unidos de outro, focalizando, notadamente, nos temas associados à cultura e aos fatores ambientais. Os temas ganharam força a partir da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), promulgada durante a Rio-92, realizada no Rio de Janeiro, no dia 05 de junho de 1992. A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural adotada, pela UNESCO, no dia 21 de maio de 2001, também foi outro episódio importante para a discussão. Ambas em conformidade com as Nações Unidas (ONU) e acatadas pelo Brasil.

O fortalecimento das iniciativas políticas, engendradas no sentido “norte/sul” e cognominadas “diálogos”, estabelece linhas demarcatórias rigidamente traçadas em um pano de fundo de aparente entendimento. Dizemos aparente por estar diante de interpretações e posições divergentes face aos fenômenos relativos à biodiversidade e a conflitos socioambientais, como veremos adiante.

Recentemente, novas modalidades de reflexão tem se contraposto a esta “tendência geográfica” que fortalecem principalmente relações classificadas como “sul/sul”, ou seja, corroboram para países asiáticos, africanos e sul e centro-americanos. Tais relações assinalam, ao contrário daquela relação anteriormente citada, interpretações mais próximas do ponto de vista das questões ambientais. Para alguns intérpretes, mais afeitos aos trabalhos localizados e às pesquisas de campo, a biodiversidade é entendida como não se separando da sociodiversidade, sobretudo, da emergência de novos “sujeitos sociais” que se apropriam dos recursos naturais consoantes que podem ser entendidos como uma autoconsciência cultural acentuada. Eles constroem suas respectivas identidades coletivas, redefinindo os próprios significados de “etnia”, de “povos tradicionais” e de mais fatores identitários. Os efeitos aparecem conjugados à preservação ambiental articulada com rituais de passagem, que hierarquizam o tempo e os espaços físicos. Exemplo disto, são as florestas amazônica e atlântica ou as florestas úmidas da bacia do Congo e do sudeste asiático que não poderiam ser compreendidas enquanto dissociadas dos povos e comunidades.

Outros intérpretes, que incorporam tal dissociação, mostram-se mais afinados com uma argumentação ambientalista radical. Prevalece uma preponderância absoluta do quadro natural para explicar a vida social. Sob este aspecto, as características do meio físico seriam determinantes para definir os princípios de qualquer política ambiental. E, assim, a preservação seria sempre entendida como “integral”, ou seja, sem a presença de unidades sociais.

A explicitação desta dupla fronteira revela mais que um conflito de interpretações. Ela coloca circunstancialmente em suspenso a utilização do modelo usual de harmonia como uma técnica de “diálogo” que silencia as diferenças e chama a atenção para os conflitos sociais manifestos nas transformações sociais e econômicas nesta virada de século. A transição tem sido também classificada como uma ruptura profunda com as medidas autoritárias inspiradas num projeto neocolonialista. Semelhante transição ainda não tem, entretanto, uma explicação acabada. Suas interpretações, mesmo as mais aprimoradas, sublinham uma constante “perda de rumo”, evidenciando uma dificuldade analítica e de compreensão da dinâmica dos processos sociais em curso. Importa revisar, portanto, intérpretes e interpretações que demonstram esta perplexidade, considerando que constituem um pressuposto para sua própria explicação.

Com apoio neste pressuposto é que pretendo expor o tema de maneira aberta. Convidando o leitor a refletir livre e acuradamente sobre as decisões de política-cultural e ambiental e sobre os direitos territoriais em pauta para povos e comunidades tradicionais. Eu busco apresentar interpretações de diferentes autores, descrevendo condições de possibilidades para o acesso a dispositivos conceituais, argumentos e esquemas explicativos capazes de propiciar uma tríplice ruptura: i) com as autoevidências, ii) com os ditames evolucionistas e iii) com o senso-comum dos dualismos (tradicional X moderno, primitivo X vanguarda, rural X urbano, periferia X centro, ex-colônias X metrópoles, atrasado X avançado, matéria prima X indústria).

Uma advertência inicial é que as “histórias de diferenças culturais”, sempre sublinhadas, não devem ser lidas apressadamente como sugerem os preceitos evolucionistas. Afinal, os conceitos de “culturas nacionais homogêneas” de “identidades étnicas” e de “processos de ambientalização”- bem como a noção geral de “pós-colonialismo”, dispostos em O local da cultura, de Homi K. Bahbah – estão passando por redefinições que dificultam exercícios comparativos e iniciativas de contraste. Assiste-se à perda da força conceitual e da capacidade de persuasão destas noções até então hegemônicas. São a partir destes condicionantes atuais que se devem apreciar as relações “norte/sul” ou aquelas “sul/sul” aqui sublinhadas.

Em O Local da Cultura, análise de Homi Bhabha, impõe-se marcar uma distância crítica mediante os historicismos e as ilusões de continuidade que fundamentam interpretações oficiosas.

“O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo”, que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente.”

Além disto, quando se relaciona direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais, cultura e meio ambiente, há distintas abordagens em jogo que não podem ser elididas.

Para intérpretes referentes às pesquisas de campo, a biodiversidade é entendida como não dissociável da sociodiversidade. A autoconsciência cultural constrói suas respectivas identidades coletivas (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, quebradeiras de coco babaçu, faxinalenses, piaçabeiros, comunidades de fundos de pasto, vazanteiros) e suas territorialidades específicas. Trata-se de identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais, com consciência ambiental profunda e mobilização expressiva em torno de direitos territoriais. A redefinição de cultura tem implicações sobre a reorganização do espaço físico e as modalidades de apropriação. Os efeitos pertinentes desta construção apontam para uma preservação ambiental conjugada com rituais de passagem que hierarquizam o tempo e os espaços físicos. As florestas tropicais, úmidas, não poderiam ser compreendidas em sua plenitude enquanto dissociadas dos povos e comunidades que tradicionalmente as ocupam. A reorganização do espaço, neste sentido, consistiria num reconhecimento das formas intrínsecas de uso comum dos recursos naturais.

Ao contrário, para outros intérpretes, mais afinados com uma argumentação ambientalista radical, inspirada nos preceitos das antigas metrópoles, prevalece a preponderância absoluta do quadro natural que seria determinante para definir os princípios de qualquer política oficial. Sob este ponto de vista, conforme já foi sublinhada, a preservação é classificada como “integral”, ou seja, dissociada de quaisquer unidades ou agentes sociais que passam a ser considerados como predadores ou “intrusos”. Tem-se uma ilegitimidade das formas tradicionais de uso dos recursos, evidenciando conflitos sociais.

Articulada com esta ilegitimidade verifica-se que, na União Européia, avoluma-se as restrições à sociodiversidade e agravam-se estigmas face às ex-colônias, com leis de imigração cada vez mais severas e com restrições às identidades étnicas e ao livre deslocamento dos agentes sociais a elas referidos. As orientações estigmatizantes, tributárias da complexidade da descolonização, avizinham-se de noções do denominado “racismo ambiental”.  Argumentos demografistas de fundamento malthusiano são tragicamente reeditados. Bem ilustram isto as tensões e as tragédias sucessivas na Ilha de Lampedusa, na Itália, com mais de 20 mil mortos, nas duas últimas décadas, dentre os que tentam entrar clandestinamente com embarcações precárias na Europa. Acrescente-se a isto as reivindicações dos chamados “sans-papiers” e as dificuldades crescentes no reconhecimento dos direitos de povos ciganos, na França. Numa direção contrária, no Brasil, se assiste à emergência concomitante de uma pluralidade de identidades coletivas com o pleno reconhecimento de seus direitos territoriais e culturais, inclusive linguísticos, e verificam-se leis de imigração mais abertas e relativamente flexíveis face aos rígidos dispositivos jurídicos adotados nos Estados Unidos e pela União Europeia.

A explicitação das múltiplas fronteiras e de seus desdobramentos traduz situações sociais contrastantes. Colocam circunstancialmente em suspenso a utilização do modelo usual de harmonia como uma técnica de diálogo entre países causando o silenciamento das diferenças. Além disso, chama a atenção para antagonismos sociais manifestos nas transformações sociais e econômicas nesta “virada de século” que afetam de maneira desigual países e continentes, blocos econômicos e “comunidades internacionais”. Sob este prisma os “diálogos setoriais” demandam uma análise crítica, dissociando a pauta de reivindicações dos movimentos sociais daqueles atos de Estado.

As implicações de uma “perda de rumo”

Há um consenso no debate entre as interpretações eruditas sobre a passagem do século XX ao XXI, enfatizando uma “perda de rumo” generalizada e uma “desorientação” geral sobre que direções tomar seja na economia, na produção de conhecimentos ou na vida cultural. As decisões políticas e os circuitos de mercado delimitam o campo da produção de bens simbólicos e, acaba por decidir que bens e serviços culturais serão financiados e o que deve ou não ser produzido.  Em um quadro de crises profundas constata-se uma complexa situação de passagem em que se assomam incertezas e dificuldades de previsão ou de estimativas confiáveis face ao futuro próximo. Assomam-se indagações acerca do “para onde vamos?” e de perguntas avizinhadas: o espaço se sobrepõe ao tempo? Há um encurtamento do tempo frente aos espaços físicos que se tornam rigidamente hierarquizados?

Os discursos explicativos destas incertezas, contaminados de metáforas, recorrem não a dispositivos econômicos ou de natureza cultural, mas à ausência dos instrumentos de exatidão, de precisão, de localização geográfica e de medição para evidenciar a magnitude das múltiplas dimensões de uma “desorientação” profunda e sem o sentido usualmente dado pelas direções marcadas na rosa dos ventos. Territórios e identidades coletivas conhecem redefinições de sentido. As fronteiras do presente não são, de modo algum, autoevidentes. O mapa já não sucede ao território como diria Baudrillard.

Para o historiador Amin Maalouf, em 2009, na entrada do novo século, não se dispunha de um instrumento para servir de guia a uma localização certeira e nem mesmo de uma velha bússola para indicar o caminho a ser seguido. O pensador afirma que se entra no novo século com um passo em falso. A “perda de rumo” estaria vinculada, consoante o próprio título de seu livro, à crise da “desregulação” geral ou ao fim das regras que disciplinariam as atividades mercantis e as políticas das agencias multilaterais.

“Nous sommes entrés dans le nouveau siècle sans bussole.” (Maalouf,2009:10)

A crise financeira e o colapso das políticas triunfalistas de inspiração neoliberal, a partir de 2008 e 2009, geraram uma desconfiança face às ideias de “desregulação”. O que facilitou a disseminação de suspeita geral do seu propósito de “libertar” o crescimento das forças produtivas que “naturalmente” ocorreria com a neutralização da ação do Estado. Com este fracasso generalizado das políticas neoliberais de “desregulação” e com os sinais de prolongada da crise econômica, as cabeças pensantes do multilateralismo estão propondo estabelecer internacionalmente um “diálogo” em “novas” bases. Em outras palavras a iniciativa de “diálogo” ocorre num momento de transição e de incertezas em que os efeitos de uma descolonização tardia são repensados e recolocados, com desdobramentos imprevisíveis.

O prefácio de Tempos Fraturados, livro póstumo de Eric Hobsbawm, lançado em 2013, logo após a morte do historiador inglês, elabora uma argumentação análoga, mas colocando o foco no que estaria implícito na ausência do velho instrumento e não nele próprio.

“(…) este livro também se refere a uma época da história que perdeu o rumo e que, nos primeiros anos do novo milênio, com mais perplexidade do que lembro ter visto numa já longa vida, aguarda desgovernada e desorientada, um futuro irreconhecível.”

Embora a propalada “perda de rumo” remeta, aparentemente, a espaço físico tem-se uma noção de tempo e de cultura. O que deixa à mostra que a crise tem uma tripla dimensão frente a categorias fundamentais e permanentes nos sistemas de pensamento.

No capítulo inicial de O Local da Cultura, Homi K.Bhabha, em consonância com os intérpretes anteriores, descreve com pormenor seu ponto de vista:

“É o tropo dos nossos tempos colocar a questão da cultura na esfera do além. Na virada do século, preocupa-nos menos a aniquilação – a morte do autor – ou a epifania – o nascimento do ‘sujeito’. Nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do ‘presente’ para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo “pós”: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminino…”

O “além” não é nem um novo horizonte e nem um abandono do passado. Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas neste fin-de-siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade. Isso porque há uma sensação de desorientação no “além”: um movimento exploratório incessante, que o termo francês au-delà capta tão bem – aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá, para frente e para trás.”

Fredric Jameson, pensador norte-americano com doutorado em Yale, fala especificamente de uma “guinada cultural” ou da dinâmica de uma cultura pós-moderna a partir dos efeitos das sucessivas guerras e de um “capitalismo tardio”. Circunstancia a polêmica sobre o “fim da arte”, remontando a Hegel. E situam as últimas décadas do século passado como uma era de grandes encenações e de um trágico teatro de operações de guerra com efeitos sobre a maneira de se pensar as transformações sociais.  Com o pós-modernismo ocorreria uma recolocação de categorias de pensamento, tanto em termos políticos quanto em termos da produção científica. Razão, ciência, tempo e espaço conhecem ressemantizações ou passam a ser relativizadas de igual modo que as categorias políticas: soberania, cidadania e território; propiciando o advento de novas categorias. Jameson capta, inclusive, neologismos como “desterritorialização”, tomado a Deleuze, articulando-o com a crise da especulação imobiliária. A situação de passagem, enquanto transição incerta, implica no abandono de determinadas categorias em proveito de outras que causa modificação completa nos esquemas interpretativos ou na modalidade de perceber os fenômenos.

Mediante a “falta de rumo”, os autores procuram alternativas. O caminho encontrado tem convergido para uma formação acadêmica capaz de propiciar coordenadas precisas para um tipo de profissional, cujos critérios de competência e saber possibilitam imprimir “direção” ou mesmo inverter “rumos”.

O pensador argentino Tomás Eloy Martinez sintetiza esta convergência. Ele considera a cartografia como uma ciência que, idealmente, pode desvendar “caminhos” e propiciar a orientação adequada em momento de crise, dobrando as “incertezas” e re-encontrando o “rumo”:

Como disse Tomáz Eloy Martinez em seu livro Purgatório “Um cartógrafo, se quiser, pode inverter os rumos do mundo”.

No compasso das perplexidades recentes poder-se-ia colocar uma interrogação nesta afirmativa de Martinez, pontuando que ao mesmo tempo em que a cartografia empresta uma ideia de completa objetividade a situações de transição, ela também é marcada por obstáculos analíticos e dificuldades interpretativas na compreensão das subjetividades. Para superação deste impasse é que, a partir de relações de pesquisa, começamos a construir os pressupostos de análise concernentes ao que denominamos de “nova cartografia social” contrastando com a cartografia oficial e de base geográfica, como tentaremos expor a seguir.

Uma transição incerta e de risco: “o novo ainda não nasceu e o velho ainda não morreu”

Um outro grupo de pensadores formula uma interpretação da “virada do século”  em torno dos riscos deste tipo de transição, que além de “perder o rumo” encontrar-se-ia numa situação de liminaridade  entre rituais de separação que não se completam e se encontram inconclusos. Tais rituais de separação estão relacionados à preparação e espera de cerimonias de nascimento e de morte.

Em Os irredutíveis: Teoremas da resistência para o tempo presente, o filósofo Daniel Bensaid,  assinala esta condição marginal de uma passagem não-concluída ou de uma sequência cerimonial incompleta de um rito de passagem que, ao contrário das previsões, não se efetuou de maneira completa na “virada de século”. Este movimento inacabado é assim descrito:

“Eis que embarcamos em uma transição incerta, em que o velho agoniza sem ser abolido, o novo pena para eclodir, entre um passado não ultrapassado e a descoberta balbuciante de um novo mundo em gestação“.

“Sob o choque da globalização capitalista, as noções de nação, território, povo, soberania e cidadania foram abaladas, assim como os parâmetros do direito internacional interestatal. Abaladas, mas não ultrapassadas. Vivemos essa grande transição, esse grande intervalo entre dois extremos, entre o “não mais” e o “ainda não”, em que o antigo não acabou de morrer, enquanto o novo pena para nascer e corre o risco de perecer antes mesmo de ter vivido.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman partilha deste esquema interpretativo e bem define sua inspiração em A.Gramsci num artigo publicado no periódico italiano Il Manifesto:

“Verso la fine degli anni Venti o l’inizio degli anni Trenta dei secolo scorso Antonio Gramsci scriveva in uno dei molti quaderni che riempi durante la sua lunga prigonia nel cárcere di Turi: “La  crisi consiste precisamente nel fato che il vecchio sta morendo ed il nuovo non più ancora nascere; in questo interregno appaiono molti sintomi morbosi.”(…)

“Propongo di riconoscere la condizione planetária odierna come um caso di interregno. Davvero, próprio come postulato da Gramsci, “il vecchio sta morendo”. Il vecchio ordine fondato fino a poco tempo fa su um principio anch’esso “trinitario” di território, stato e nazione come chiave ala distribuzione planetária dela sovranitá e sul potere sposato ala politica dello stato nazione territoriale come sua unica agenzia ativa, sta ormai morendo – la sovranitá non essendo più collegata ad alcuno degli elementi dele entità e del principio trinitari, o essendo comunque collegata ad essi in una parte che si riduce constantemente, mentre il matrimonio aparentemente indestruttibile di potere e politica si sta risolvendo in uma separazione e forse in um divorzio. La sovranitá è per cosi, dire, disancorata e liberamente flutuante. I critério dela sua allocazione  tendono a essere fortemente contestati, mentre la sucessione di uma regola di allocazione e la sua applicazione in um gran numero di casi rovesciata (ossia, la regola è ridotta a chiosa retrospettiva di uno stato di fato già compiuto).(Bauman,2010)

Em consonância com Bauman, o jornalista Serge Halimi, diretor de Le Monde Diplomatique, nos convida a refletir numa mesma direção, abrindo seu artigo com um verso indagativo de Poésie Ininterrompue de Paul Éluard :

“Eu quero saber de onde estou partindo/Para manter tanta esperança.” .

Na formulação mais acabada de Serge Halimi, em artigo publicado no Le Monde Diplomatique, tem-se o seguinte:

“…nas últimas décadas, a transformação do mundo tem sido tão rápida que superou  em velocidade nossa capacidade de analisá-la. A queda do Muro de Berlim, o surgimento dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), as novas tecnologias, as crises financeiras, as revoltas árabes, o declínio europeu: a cada vez, especialistas se revezam para nos anunciar o fim da história ou o nascimento de uma nova ordem mundial.

Além destes prematuros enterros ou desses partos incertos, três grandes tendências surgiram, mais ou menos universais, das quais, num primeiro momento, é importante fazer um balanço: crescentes desigualdades sociais, decomposição da democracia política e encolhimento da soberania nacional.”

As metáforas vinculadas ao tempo biológico e sua finitude funcionam uma vez mais como mecanismo explicativo das transformações sociais. Constata-se que nos desdobramentos desta explicação alguns de seus resultados convergem para figuras literárias e uma delas, em especial, merece destaque, aquela que se refere ao romance de Tomasi de Lampedusa intitulado Il Gattopardo, cuja adaptação cinematográfica foi realizada por Luchino Visconti. No romance, tal como acomete hoje na ilha do mesmo nome ou mais uma vez em torno de Lampedusa, sucede transformações e o mecanismo explicativo delas pode ser sintetizado no que ficou conhecido como gatopardismo e que pode ser resumido em:  “Se queremos que tudo permaneça como está, faz-se necessário que tudo se transforme ou mude.” Ou ainda para tudo ficar como está, é necessário que tudo mude.

“Rumo leste, rumo sul”: velhas certezas desfeitas

Durante séculos, até duas décadas passadas, não havia dúvida de que o curso do mundo se manteria o mesmo. O Oeste seria sempre o “rumo” do processo civilizatório. Uma acurada síntese do literato português Eça de Queiroz reafirmava esta “verdade irretorquível” nas Cartas de Inglaterra, 1878. Tratava-se de uma correspondência enviada por Eça regularmente ao jornal brasileiro “Gazeta de Notícias” e ao jornal portuense “A Actualidade”, durante os anos de 1878 a 1882. O autor reproduz uma das certezas da era de expansão imperialista, que hoje nos parece absolutamente abalada, senão completamente desfeita: a da dinâmica constante do “ocidente”.

“Como a civilização caminha para o oeste, isto passar-se-á aí para o século XXVIII, na Nova Zelândia ou na Nova Austrália, quando nós, por nosso turno, formos as velhas raças do Oriente, as nossas línguas idiomas mortos, e Paris e Londres montões de colunas truncadas como hoje Palmira e Babilônia, que o zelandês e o australiano virão visitar em balão, com bilhete de ida e volta…”

A expectativa da ruinaria pode até ser a mesma, mas as projeções e estimativas de “rumo” mudaram radicalmente neste início do século XXI. A problematização da representação espacial tende  acentuar-se uma vez que, do ponto de vista econômico, o centro de gravidade do mundo estaria mudando. Para Hobsbawm, com a atual depressão econômica, o mundo não se move para Oeste, mas do Oeste (América do Norte e Europa) para o Sul (África e América Central e América do Sul) e para o Leste asiático. Tal movimento é de um tempo largo, já que as velhas regiões metropolitanas e hegemônicas têm um acúmulo de riquezas que lhes permitem garantir ainda por décadas um padrão de vida superior ao dos países emergentes, como, por exemplo, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia e China).

Uma das deduções poderia indicar que não teremos grandes alterações cartográficas nos mapas-mundi em curto prazo, embora a tensão social nos “países centrais” (EUA e Europa) mantenha uma tendência ascendente. Não tem faltado, entretanto, exercícios de geógrafos, historiadores e antropólogos que colocam a África, a Ásia e a América do Sul na parte superior do mapa-mundi e os países do hoje chamado “hemisfério norte” na sua parte inferior.

Crítica ao eurocentrismo

Os principais intérpretes dos efeitos da eurocentricidade sobre a vida intelectual das antigas colônias são os pensadores de universidades da União Européia. Para o historiador britânico Jeremy Black, a ruptura com o eurocentrismo consiste numa questão proeminente nesta quadra de reconceituação intelectual e política. Os resultados da relação da cartografia com a religião são recuperados historicamente pelo antropólogo Jack Goody no acurado levantamento documental em que procura desconstruir o discurso eurocêntrico produzido a partir do Renascimento clássico. Goody constata a perda da informação científica sob a hegemonia do cristianismo em Renascimento: um ou muitos? Analisa seus efeitos negativos sobre o pensamento científico e, em especial, sobre a cartografia:

“Por exemplo, no que diz respeito à cartografia, os mapas cristãos regrediram em relação aos minuciosos mapas gregos e romanos – e, de algum modo, em relação aos mapas islâmicos, como os de Al-Idrisi no livro de Rogério (1154) e mais tarde no século XVI, no norte da Europa, os mapas de Mercator. O mapa cristão do início do século XIII (“T-O”) foi chamado de “diagrama bastante parco”. Ptolomeu teve de ser redescoberto, assim como a maioria das ciências teve de renascer. Esse é outro exemplo de perda de informações sob o cristianismo.”

As críticas ao eurocentrismo se estendem ao processo de produção artística – mapas e atlas – que privilegiam desmatamentos de florestas tropicais, poluição de rios e mares, desertificação e devastação de campos naturais e savanas. E mantem os povos e comunidades tradicionais ausentes de suas representações cartográficas. A cartografia nesta situação se manteria distante da pesquisa etnográfica ao contrário do que começa a prevalecer atualmente na América do Sul, na África e na Ásia. Neste contexto, os olhares críticos também se voltam para os “novos cartógrafos” de que nos fala Deleuze, como aqueles que poderiam redesenhar mapas segundo o sistema de representação dos próprios agentes sociais, fortalecer o processo de autoconsciência cultural e reorientar os “novos rumos” da vida social.

As artes eruditas, ainda com Hobsbawm, permanecem eurocêntricas. Elas assim se mantêm mesmo diante de um  planeta globalizado em que as cadeias de museus e as sequencias programadas de exposições, de “bienais” e de “grandes coleções” transmitem ordinariamente uma ampla ideia de difusão cultural em vista de condições de possibilidades idealmente facultadas pela produção intelectual e artística. O desenvolvimento econômico, nos termos de Hobsbawm, possibilitaria uma cena cultural fundada na crítica de “sociedades coloniais” em que a instituição do repatriamento de coleções passou a funcionar como uma medida “natural” de compensação.

Este tema da repatriação das peças obtidas nas guerras de conquista, que remetem ao colonialismo, começou a ganhar corpo nas últimas décadas, quando grandes museus europeus vêm fragilizado o seu significado “nacional” e quando países emergentes buscam, ao contrário, consolidar “projetos nacionalistas” em termos de política cultural. Um capítulo de tensões se descortina, inaugurando intensas polêmicas.

A “repatriação” de coleções e suas dificuldades

Na análise circunstanciada de Hobsbawm em Tempo Fraturado, “Os contéudos desses museus (com referencia aos dois museus de Oskar Reinhardt de Wintesthrue(…) não são nacionais, apesar de sua localização em certos lugares, e não pertencem a nenhum patrimônio cultural nacional, qualquer que tenha sido sua forma original de acumulação (roubo, conquista, monarquia, dinheiro ou patrocínio). Coleções deste tipo podem ou não vir a ser o alicerce de museus oficialmente designados como nacionais, mas de todo modo sua intenção é supranacional.”

O Musée du Quai Branly, em Paris, um espetáculo da colonização mesclado com pós-modernismo, seria uma ilustração extrema disto ao expor de modo tardio as coleções de “povos selvagens”, obtidas nas grandes expedições científicas, como “a missão” Dakar-Djibouti de 1931. Este exemplo mais acabado e algo tardio simbolizam os efeitos possíveis e profundos do collecionismo sobre a autoconsciência cultural de povos e comunidades tradicionais. Museus desta ordem tornaram-se modelos do neocolonialismo e funcionam articulando livrarias, galerias, lojas de artesanato dos “nativos”, a produção de peças exóticas e de consumo de massa, assim, revelando a força dos diferentes circuitos mercantis que compõem o mercado de bens simbólicos nos dias de hoje.

Pode-se asseverar ainda com Hobsbawm:

“Porém, um novo problema surgiu no mundo da descolonização e do moderno turismo globalizado, a saber, a concentração do corpus de grande arte de aceitação universal quase sempre em museus e coleções de antigas potencias imperiais ocidentais (quer dizer até o século XX basicamente europeias) e nas acumulações de seus governantes e dos ricos.”

Um dos efeitos mais pertinentes deste tipo de circuito mercantil aquecido e motivado que combina inovação tecnológica e consumo de massa com “commoditização” de bens culturais, valorizando-os e acentuando seu valor de troca, concerne à reedição de uma postura de inspiração nacionalista que reivindica aqueles bens usurpados como “patrimônio nacional”.

Em outros termos, como sublinha Hobsbawm:

“Isso provocou uma demanda pela repatriação dessas obras, como na Grécia, na Turquia e na África Ocidental”.

Mediante as dificuldades implícitas nestas ditas “compensações”, que precisariam ser mais bem apreciadas, tem-se um exercício contrastante que clama por uma relativização do eurocentrismo como pré-condição para se iniciar estes chamados “diálogos setoriais”. E isto não parece simples e nem tampouco fácil.   Não depende só da vontade política e nem da soma de desejos individuais. Mesmo que se proceda a uma distinção criteriosa entre “cultura nacional” e “cultura universal”, é necessário atentar para um exercício histórico rediscutindo a revolução industrial, o florescimento do “colecionismo” e suas variantes no final do século XX. O antropólogo brasileiro Castro Faria pondera que neste fim de século foram repensadas as classificações “biológicas”, “botânicas” e “geológicas” orquestradas pelos naturalistas que re-escreveram a relação entre natureza e cultura desde fins do século XVIII. Exemplifica com a leitura de Foucault sobre “classificação” e mostra que, da mesma maneira, foram colocados em suspenso os critérios dos mecenas e colecionadores, que levaram museus e galerias a se especializarem nas “escolas de arte” produzidas por preceitos estéticos instituidores de periodizações complexas: pinacotecas, museus de arte moderna, galerias e jardins botânicos. A “aceitação nacional” como etiqueta tornou-se fragilizada, esvaziando muitas vezes o sentido de certas reivindicações de repatriamento de bens culturais. Não há, por exemplo, quem reivindique as coleções de Curt Nimuendaju, encomendadas por E.Nordeskiold no final do século XIX e inicio do século XX, e que estão expostas no Museu de Gotemburgo (Suécia). Não há também quem reivindique coleções de artefatos de povos indígenas montadas por clérigos e missionários de ordens religiosas que, hoje, se encontram em Turim, na Itália. Caso alguma delas demonstre propósito de repatriar as coleções que mantém haveria dificuldade em aqui conservá-las.

Com a ideia de repatriação sendo difundida tem-se um repertório de relações que conjuga passado e presente ao reverter hierarquias entre nações. Para isso, é necessário indicar que os conceitos usuais de “cultura nacional” se mostram em profundo processo de redefinição, como nota Bahbha. Alguns autores chegam a falar numa nova modalidade de “internacionalismo” com o advento de relações simétricas. Neste ponto, de suposição de igualdade entre nações, a ideia de “diálogo” se transforma em indagações sucessivas e em mobilizações intelectuais e políticas. Este movimento tanto procede a uma leitura crítica do “pós-colonialismo” quanto do “neocolonialismo”, e consiste num fator de imprevisibilidade que merece ser examinado com acuro e de maneira detida para além do que uma simples palestra.

Uma ruptura radical no padrão de relações políticas

No plano político, por outro lado, assiste-se a transformações que redefinem a relação da “política” com o “direito”. Se forem verificadas crises e ameaças à democracia, assiste-se também à construção social desta própria democracia. Nesta primeira década do século XXI, o continente sul-americano e, em especial, o Brasil, está passando por profundas transformações sociais e descrevendo uma ruptura radical face aos acontecimentos de décadas anteriores. Economistas têm pontuado que o crescimento dos países do Mercosul e aquele dos países da Pan-Amazônia, nos últimos dez anos, foi muito mais elevado do que aquele ocorrido entre o Consenso de Washington, em 1989, e o início do século XXI. Tem-se, além disto, uma situação de progresso social e econômico com governos democráticos eleitos e sensíveis às reivindicações populares, ao contrário do cenário de recessão e desemprego de outras regiões do globo. Um dos principais fatores responsáveis por estes resultados pode ser atribuído ao mérito das políticas governamentais  por terem rompido com os princípios neoliberais que “destruíram metodicamente os coletivos”, como analisa Bourdieu. Além de estar consolidando uma experiência democrática com mobilização social, subscrevendo inclusive Declarações tal como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos dos Povos Indígenas em 2007, e ratificando Convenções internacionais que asseguram o reconhecimento da diversidade cultural, como, por exemplo, a Convenção 169 da OIT reconhecida pelo Brasil em 2002/2003.

No bojo destas transformações alguns autores chegam a falar, no plano jurídico, de um “novo constitucionalismo sul americano”. Para isso,  as experiências de Bolívia, Equador, Venezuela e Brasil servem para ilustrar o que estão discutindo intensamente meio a mobilizações de rua e protestos. As mediações políticas usuais, instrumentos democráticos de participação direta, estão sendo colocadas em xeque.

As discussões sobre as formas gerais de participação política, atreladas a uma ideia ampla de “consulta”, encontram-se na ordem do dia da vida social brasileira desde junho de 2013. Embora difusas e deixando de considerar a relevância do poder estatal, tais mobilizações, em virtude de sua proclamada autonomia, da heterogeneidade de sua composição e da dispersão de suas reivindicações, apontam não somente para novos significados de “política”, mas principalmente para novos padrões de relação política. Elas conjugam reivindicações econômicas com afirmações identitárias e princípios éticos. Associam também “atos culturais irreverentes” com consignas radicais de defesa do meio ambiente, sinalizando para a incorporação de ações diretas e práticas efêmeras de ação coletiva não previstas nos dispositivos eleitorais e partidários. Em resposta a estas reivindicações, colocadas cada vez com maior vigor, pela persistência, pela força e pela intensidade das mobilizações, o principal ponto da agenda elaborada pelos poderes executivo e legislativo passou a ser a chamada “reforma política”. No âmbito do judiciário estaria ocorrendo uma atualização de dispositivos de participação ampla, em se se destaca a efetivação da Convenção 169 da OIT. Esta atualidade, de certo modo, transcende à política nacional e começa a fortalecer as relações “sul/sul”.  

Cabe destacar que dos vinte e dois países que a ratificaram até junho de 2013, em termos da Convenção 169, quinze deles encontram-se no continente americano. Oito países pertencem a América do Sul e os demais a América Central com exceção do México. Apenas Noruega, Dinamarca, Espanha e Holanda, no continente europeu, a ratificaram. Na África, o primeiro e único país a reconhecê-la foi a República Centro-Africana. Quênia, Moçambique e Zâmbia estão iniciando uma discussão em torno da defesa dos direitos territoriais dos povos tribais. No caso da Pan-Amazônia, apenas dois países não são signatários da Convenção 169, quais sejam: Suriname e República da Guiana. Pode-se afirmar que 24 anos depois de adotada pela OIT a Convenção 169 se mantém como um instrumento atual nas pautas de reivindicações relativas a direitos humanos de povos e comunidades tradicionais. Isto não significa que ela estaria sendo acionada tardiamente, mas sim que este é o tempo em que ela está sendo percebida pelos agentes sociais como um instrumento de resistência. A consciência da possibilidade de uso deste dispositivo jurídico, que privilegia agentes sociais com consciência de si mesmos, torna-se um capítulo sempre coetâneo de determinado grau de percepção política.

No caso brasileiro a ratificação por si só não tem servido de garantia para a efetivação dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais atrelados ao direito de consulta prévia. Haja vista que sucessivos governos têm privilegiado um modelo de desenvolvimento apoiado na economia agro-exportadora de commodities que sacrifica a economia camponesa de base familiar e os territórios de uso comum de povos tradicionais. A flexibilização dos direitos territoriais tem sido recorrente, o que tem resultado em situações de graves conflitos sociais. De igual modo, tem-se o negligenciamento dos mecanismos de participação direta de povos e comunidades atingidos pela implantação de megaprojetos de infraestrutura (rodovias, portos, aeroportos, hidrovias, barragens), de grandes plantações homogêneas com fins industriais (soja, dendê, cana-de-açúcar, pinus, eucalipto e acácia), de pastagens artificiais de grandes empreendimentos agropecuários e de extração madeireira, mineral e petrolífera.

As terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades tradicionais (cf. Art.14 da Convenção 169), ao serem mantidas sob regime de uso comum dos recursos naturais, contrariam a regra básica do mercado de terras. Porquanto não são passíveis de atos de compra e venda e não fazem parte dos diferentes circuitos mercantis de troca. O usufruto exclusivo – caso dos povos indígenas – e o título definitivo da terra – caso das comunidades remanescentes de quilombos – são detidos pelas formas organizativas comunitárias e não pelos indivíduos, o que impede sua “livre” aquisição ou venda.

A violação de dispositivos da Convenção 169 tem sido registrada no caso da implantação da hidrelétrica de Belo Monte, no caso da base de lançamento de foguetes de Alcântara e de inúmeras outras ocorrências.

O reconhecimento da sociodiversidade pelo Dec.6.040 foi consolidado a partir do funcionamento da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Nas reuniões da Comissão entre 2007 e 2013 os representantes estreitaram os laços ao firmar pactos tácitos de solidariedade. A garantia da sociodiversidade está no próprio instrumento, de característica plural que movimenta a Comissão. Embora ainda não tenham acionado todo o potencial político desta Comissão de maneira apropriada, pode-se dizer que tem apoiado as Comissões Estaduais e as Câmaras Técnicas (vide Projeto de Lei 7447). A relevância de um banco de dados sobre povos e comunidades tradicionais e a ampliação da representação da Comissão Nacional em vários Conselhos consistem em produtos desta capacidade política.

Não é simples ou fácil conjugar representações nacionais com a diversidade de representações que caracterizam as entidades locais. A questão da representatividade diferenciada e suas implicações encontram-se na ordem do dia das discussões dos movimentos sociais, mediante a dificuldade de aproximar o que se coloca sob o signo de diferenças. Um novo padrão de relações políticas teria que superar este tipo de obstáculo, conforme sugerem as pautas reivindicatórias dos movimentos sociais.

Há, entretanto, obstáculos de difícil superação. O enaltecimento desmesurado dos resultados estatísticos de exportação de produtos primários tem levado a um triunfalismo dos agronegócios, a uma retórica ufanista com críticas duras e condenações: i) à demarcação das terras indígenas, ii) à titulação dos territórios quilombolas, iii) à pequena agricultura de base familiar e a iv) todas as formas de extrativismo que envolvam agentes sociais denominados: seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco babaçu, faxinalenses, comunidades de fundos de pasto, piaçabeiros, peconheiros, cipozeiros, vazanteiros, caiçaras, pescadores artesanais e artesãos.

A CNA (Confederação Nacional de Agricultura), artífice principal do tipo de retórica e de tratamento midiático hiperbolizante, mobilizou produtores e intelectuais que fazem o registro encomiástico do pretenso sucesso, bem como um pseudo-elogio fúnebre da agricultura familiar e do extrativismo. Arautos do “fim do campesinato” e do “fim do extrativismo” esposam esta linguagem redentorista que louva os grandes empreendimentos agropecuários, os agronegócios, a “reprimarização da economia” e a concentração fundiária, e eliminando os conflitos sociais e as contradições que marcam a vida econômica. A tendência concentracionista com reestruturação forma do mercado de terras, em escala global, transcende aos elevados preços da terra e conduz as discussões aos meandros de um fator próprio do “desenvolvimento sustentável”, qual seja a denominada “soberania alimentar”, que se mostra seriamente ameaçada, numa quadra histórica em que existem 07 empresas que produzem 70% das sementes no mundo. A pressão sobre as terras tradicionalmente ocupadas, que se destinam à produção de culturas alimentares, objetiva flexibilizar os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais para propiciar condições para uma expansão do mercado de terras  diretamente atrelado às commodities agrícolas.

Cultura de resistência

Há diferença de interpretações evolucionistas. As escolhas teóricas no sentido de uma “nova cartografia social”, fazem-se críticas de qualquer essencialização de povos e comunidades tradicionais, afirmando uma contra-narrativa dinâmica no plano identitário e na construção do território em oposição à fixidez da cartografia oficial e das classificações dela decorrentes. Ao se opor a esta imutabilidade, as escolhas demonstram que as proclamações em defesa do reconhecimento de direitos, ressaltando determinados sinais diacríticos, reafirmando fatos históricos e uma certa “origem”, não podem ser entendidas como se fossem as principais opções para movimentos de resistência. Segundo Paoliello aceitar isso acriticamente significa correr o risco de coonestar os efeitos do autoritarismo da sociedade colonial com suas divisões raciais, religiosas e identitárias impostas historicamente através de dispositivos como os censos demográficos desde 1872, data do primeiro recenseamento do Brasil. Reiterando a abordagem de Paoliello, não seriam necessariamente as demandas pelo reconhecimento, mas as reivindicações de posse de um território, feitas de maneira coletiva no tempo presente, que constituiriam “o gatilho que dispara o processo de etnogênese.”  A metáfora do “disparador”, que alavanca a passagem de uma condição a outra, concerne a uma proposição que se mostra em consonância com o pressuposto de que a etnologia, ao conceituar as “novas etnias” e os critérios de autodefinição dos agentes sociais, abriu as portas para um instrumento crítico de compreensão dos conflitos por recursos naturais com ênfase nas mobilizações por territórios. Tais mobilizações transcendem às particularidades geográficas e perpassam diferentes ecossistemas que podem se referir tanto ao bioma amazônico quanto ao planalto meridional ou à região sertaneja do semi-árido.

Poder-se-ia dizer, acrescentando argumentos de Edward Said, que os critérios político-organizativos das mobilizações étnicas não deixam mais o mundo político “à metafísica das essências”. As ações coletivas se oporiam ao rígido repertório de procedimentos que frigorificam identidades étnicas, cristalizam seus componentes e que poderiam instaurar uma cizânia permanente entre os movimentos sociais, fragilizando qualquer tentativa de resistência. Paoliello se dispõe a enfrentar tais desafios e produz uma crítica destas visões esteriotipadas, destes mitos políticos e destas animosidades. Para isso, seria preciso analisar as pautas de reivindicações de movimentos sociais, os programas de resistência étnica, e distinguir as estratégias de quem se autodefine como indígena ou como quilombola.

Os movimentos sociais, que conjugam uma consciência ecológica com raízes locais profundas e reivindicações por territórios e identidades coletivas, consubstanciando um processo cada vez mais intenso de autoconsciência cultural, através de mobilizações intensas, que bem descrevem contornos desta fronteira. Ser autoconsciente também significa ter autoconfiança. O respeito a si mesmo requer a confirmação por outros que permite estabelecer estreitos laços de solidariedade, configurando uma “arte de resistência” construída cotidianamente com símbolos e práticas expressas.

As experiências de pesquisa do Projeto Nova Cartografia Social, apresentadas neste evento, em pelo menos quatro palestras, emergem, portanto, numa situação de profunda ruptura teórica com abordagens geografizantes e biologizantes, o que contribui para o fortalecimento das  reivindicações territoriais e identitárias de povos e comunidades tradicionais.

 

Alfredo Wagner Berno de Almeida é Antropólogo, Professor da Universidade do Estado do Amazonas e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A ilustração em destaque busca captar três formas de colonialismo praticada ao longo dos séculos – cristão, científico e econômico. Ela e as demais ilustrações são de autoria de Sandro Schutt, ilustrador e editor de conteúdo da Amazônia Latitude.  Background photo created by jannoon028 – www.freepik.com
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