Antropologia no Antropoceno

Cardiff University

Amazonia in the Anthropocene: people, soils, plants, forests
Autor: Nicholas C. Kawa
Editora: University of Texas Press
Ano: 2016

A Amazônia merece, dada sua complexidade e importância, ser constantemente pensada, discutida, polemizada, enfim, estar no centro do debate nacional e internacional. Desde o Século XVI, a região desperta fascínio e frêmito em igual medida, embora sempre desafiando a capacidade analítica e as bases conceituais de exploradores e cientistas.

Depois de mais de 500 anos de transformação sócio-ecológica, persistente violência contra pobres e não-brancos, e exploração gananciosa das ‘coisas da terra’, reduzidas e maltratadas como meros ‘recursos naturais’, a Amazônia continua a exigir novas idéias e respostas criativas a problemas que se acumulam. A região é de novo, como em meados do século passado, a grande fronteira do sonho desenvolvimentista de fora para dentro, trágico e repetitivo, embalado pelo barulho de tanta motosserra, tratores pesados, bateias de garimpo e barcaças graneleiras cortando e arruinando os rios. Tudo clama por mais debate, mais ideias, mais publicações; novamente é preciso repensar o que foi esquecido e reaprender a valorizar a Amazônia. Nada se conseguirá a esse respeito sem uma abertura genuína e honesta para o aprendizado conjunto, protagonizado igual e horizontalmente por letrados e especialistas na experiencia da vida de ribeirinhos, indígenas, moradores das periferias urbanas e novas levas de imigrantes.

Porém, ainda que tais livros sejam mais do que nunca indispensáveis, não podemos aceitar ideias requentadas, nem repetição de fórmulas desgastadas. É preciso mobilizar conceitos, ferramentas intelectuais e conhecimentos acumulados que interroguem e critiquem uma modernidade desigual e perversa. Nesse sentido, ainda que bem vinda, a publicação de Nicholas C. Kawa – “Anthropology in the Anthropocene: People, Soils, Plants, Forests”, University of Texas Press: Austin, 2016 – pouco contribui para revigorar a contenda. A obra, por um lado, é bastante interessante e mesmo divertida, especialmente quando descreve costumes locais, impressões dos moradores e viajantes. É resultado de 17 meses de pesquisa de doutoramento do autor (em diversas etapas entre 2003 e 2010) e de sua jornada explorando o Rio Madeira, um dos principais afluentes do grande Amazonas. É impressionante que, apesar de ser um trabalho de etnografia conduzido por um antropólogo, termos botânicos e a geografia física da região receberam grande atenção. A estrutura do texto segue em larga medida a ordem do título, com capítulos sobre a história da invasão européia e o avanço das relações capitalistas sobre a socionatureza regional, sobre solos e a intrigante e rica terra preta de índio (cada vez mais estudada pelos cientistas), sobre plantas e florestas e, finalmente, impactos das mudanças climáticas. Imagens, mapas e generoso apêndice tornam o livro bastante atraente e captam a atenção do leitor, principalmente de estrangeiros que nunca tenham visitado a Amazônia.

Por outro lado, a proposta do livro se apequena frente à dimensão e complexidade do objeto de estudo. Talvez a falha mais notória seja o fato de que o conceito fulcral do texto e no título, o antropoceno, ser apenas mencionado e pouquíssimo teorizado. A noção de uma época geológica dominada pela ação humana, apropriadamente chamada de antropoceno (assim como o argumento que o capitalismo contemporâneo estaria produzido impactos geológicos e levaria ao ‘capitaloceno’), deveria suscitar uma discussão mais ampla, tanto a favor e contra, mas o livro deixa a desejar. A narrativa é largamente descritiva, pouco afeita à análise e reflexão sobre as ramificações ontológicas e políticas dos processos que vão sendo descritos. O envolvimento de solos, plantas e clima no desenvolvimento regional e nacional demandaria uma perspectiva firmemente político-ecológica, sem romantizar ou simplificar tendência e personagens. Porém, as páginas do livro contém pouco da história social da Amazônia, dos dilemas políticos, econômicos e ideológicos, das relações locais e inter-regionais de poder, como também do legado do colonialismo e das circunstâncias neo-coloniais hoje presentes. Foram estudados alguns aspectos em uma determinada área da Amazônia, por alguns meses e sem grande esforço para conectar passado e presente, local e global, riqueza e pobreza, ignorâncias científicas e agressões várias.  Cabe lembrar que depois dos europeus, veio a usurpação norte-americana e agora cresce a influência geopolítica dos chineses, financiando ferrovias e hidrovias, barragens e estradas, mas o livro toma pouca nota de tais controvérsias.

Considerando os aspectos positivos e negativos do livro de Kawa, certamente há muito mérito, mas perdeu-se a oportunidade de dar um passo firme na direção de um debate mais sério e eficaz. Afinal, do que realmente trata o livro e o que acrescenta? A resposta não é clara, demanda esclarecimentos suplementares, além dos seis capítulos já publicados. Soma-se à literatura já existente, nice to have, mas a Amazônia necessita de muito mais que monografias de viajantes extemporâneos, comprometidos, mas com limitado engajamento no barro dos problemas e no garimpo de alternativas autênticas. A Amazônia exige um debate plural, transcontinental e que rompa epistemologias pré-fabricadas, mas que contenha o que há de melhor aqui e no resto do mundo. A questão amazônica é, basicamente, a exaustão de uma modernidade consumista, degradante e perdulária, que concentra muito em tão poucos bolsos às expensas de tantos outros. Dessa forma, impõe-se um olhar agudo, pensamento crítico e consequências politicas concretas. Os diletantes e curiosos devem primeiro compreender a dor e as oportunidades da realidade Amazônica, onde natureza e gente sofrem juntos para resistir e preservar a possibilidade de um futuro mais justo. Que venham mais, porém mais diligentes e politizados livros.

 

Antônio A R Ioris, professor da School of Geography and Planning, Cardiff University, coordenador da Rede Agroculturas  ([email protected])
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