As disputas por uma Amazônia internacional

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Depoimentos interdisciplinares de História e Direito

Evocar o nome Amazônia abre espaço para diversas temáticas e apaixonadas inspirações. Assim tem sido desde o primeiro aporte colonizador nas praias litorâneas do que hoje é o Brasil, e muito provavelmente assim continuará sendo até a derrubada da última castanheira, o fratricídio dos botos remanescentes, ou o esfolamento da derradeira panthera onca. Lamentável é que, por vezes, mesmo os mais sinceros e apaixonados sentimentos por esta região impressionante e monumental não consigam conter o ímpeto humano naquilo que carrega de mais destrutivo e vil.

Hoje, discute-se com afinco, precisamente em razão da relevância, temas como o desenvolvimento sustentável, implicações socioambientais das mudanças climáticas, preservação da biodiversidade cada vez mais fragilizada, imigração e fronteiras. Paralelamente, mantém a relevância a temática da propriedade e sua aplicação à questão amazônica, mormente se considerada a expansão do agronegócio como modelo econômico beneficiado pela atual situação das coisas, e toda a carga de preocupações por ele acarretada. Desde o seu desbravo, proliferaram na floresta exploradores e cronistas em missões oficiais; embrenharam-se nas matas missionários com seus altos ideais do espírito, ou bandeirantes e seus “nobres” valores invertidos; vieram naturalistas sob o mando da ciência moderna, ou aventureiros de toda sorte e com os mais despreocupados motivos; não se podendo esquecer aqueles que já habitavam estas paragens, seus moradores nativos, originários ou já mesclados a elementos humanos de fora, de qualquer forma, frequentemente desconsiderados da equação social que o Brasil ainda está por resolver.

A Amazônia e seus povos têm, sim, capacidade de se defender, de preservar seus modos de vida e sua rica cultura, e ao mesmo tempo de apresentar propostas que deem espaço à cooperação e solidariedade internacional. Tarefa complexa, mas à altura da complexidade da própria Amazônia.

Velas e decretos ao mar

Em 1609, o jurista e pensador holandês Hugo Grotius publicou sua obra Mare Liberum, que propôs, na esteira do jusnaturalismo, a abertura da navegação marítima e a conquista dos territórios ultramarinos por todas as nações. Os instrumentos normativos que davam ar de legalidade às práticas portuguesa e espanhola violavam o direito natural que Grotius teorizava. Bulas (unilaterais e autoritárias) e tratados (bilaterais e excludentes de todo o resto da Europa) representavam, em sua visão, a “lei volitiva”, oposta ao direito natural e “cujas regras não podiam ser deduzidas de princípios imutáveis por um claro processo de raciocínio, e que tinham como única fonte a vontade humana”.

Com efeito, Grotius criticava a declaração de posse e partilha que representou a Bula Intercoetera, de lavra do Papa Alexandre VI, assinalando que “nenhum homem é senhor de coisa que nem ele mesmo jamais chegou a possuir, nem qualquer outro a tenha possuído em seu nome” (tradução livre). Essa, de fato, é a característica marcante dos feitos ibéricos no Novo Mundo, traduzidos em “uma posse que precedeu a conquista”, como avalia a professora Marilene Corrêa, no livro O Paiz do Amazonas, de 2004.

Vasco da Gama chega à Calicut (Kozhikode), Índia. Pintura de Alfredo Gameiro, 1498. Fonte: divulgação.

Fundamentando sua tese na necessidade de domínio de fato, e in loco, para o exercício de domínio sobre um território, em desapreço aos meros títulos formais e autodeclarados de posse, Grotius contestou a presença e atuação dos portugueses na Ásia, especificamente nas Índias, onde não teriam direito nenhum à exclusividade do comércio marítimo, pois desde a Antiguidade já se conheciam aquelas terras, bem como já eram habitadas por sociedades seculares com governos próprios, ainda que a palavra do Deus cristão por lá ainda não houvesse chegado.

Grotius entendeu que era importante à questão amazônica o aspecto da dominação das “almas gentias” – isto é, o debate colonizador sobre se tinham ou não alma os nativos pagãos. As teses desenvolvidas nesse sentido revestiam-se não apenas do elemento motivador religioso e altruísta, como também dos interesses de exploração econômica da mão-de-obra indígena e destituição de seus direitos naturais sobre as terras que habitavam. Neste sentido, Grotius criticou a autoridade do Papa Alexandre VI quanto ao domínio sobre os “infiéis”, os não cristãos habitantes do Novo Mundo.

Se por muito tempo os mares ainda permaneceram em disputa constante, não significando nada além de riscos e conflitos constantes, o ingresso e trânsito livre pelas águas do Rio Amazonas logo passou a configurar um novo problema. As disputas na Amazônia Portuguesa e na Amazônia Espanhola intensificaram-se em razão da posição estratégica do território. A professora Marilene Corrêa lembra, ainda em O Paiz do Amazonas, que a defesa do rio era a defesa da soberania nacional, combatendo-se os projetos religiosos e os interesses seculares de outros povos e nações.

Mais tarde, já no Século XIX, o conflito de interesses na abertura deste portentoso rio pode ser analisado parcialmente a partir de um episódio capitaneando por um oficial dos Estados Unidos da América, Matthew Fontaine Maury, tenente da armada americana que esteve em passagem pelo Brasil na segunda metade do Século XIX, e que promoveu uma ampla campanha pela abertura da navegação internacional pelo Rio Amazonas. Tendo em mente a expansão comercial e mesmo a colonização americana no Vale do Amazonas, para onde propunha transplantar as fazendas do sul dos Estados Unidos e seus escravos, publicou suas Memórias no Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, em 1853, onde acusava o Brasil de valer-se de sua posição geográfica para obstar o progresso das nações co-possuidoras do Rio Amazonas, coagindo as repúblicas menores ao entorno a celebrarem tratados bilaterais prejudiciais ao desenvolvimento da região e máximo aproveitamento dos recursos amazônicos por todas as nações merecedoras – escopo que fugia à mera circunscrição pan-amazônica.

Contra tal posicionamento, insurgiu-se de pronto o engenheiro militar João Baptista de Castro Moraes Antas, que, por sua vez, fez publicar no mesmo periódico, também em 1853, sua Breve Resposta, onde, com o ímpeto tão comum entre os notáveis conhecedores de facto das coisas da Amazônia, buscou rechaçar as narrativas propagandistas de Maury, que insistia em retratar a Amazônia como um paraíso intocado e lucrativo, mal aproveitado pelas nações latinas.

Em 1854, também saiu em defesa da soberania brasileira, na questão amazônica, o napolitano-argentino Pedro de Angelis, que dedicou ao Imperador D. Pedro II sua Respuesta aos escritos de Maury, invocando acima de tudo o “direito das gentes”, pautado no mesmo direito natural imutável e supranacional que Grotius já defendera.

Nos escritos de Maury, sobre os quais nos debruçamos, o tenente americano invoca, ainda, uma das fábulas de Esopo para metaforizar as políticas oficiais brasileiras, sob sua visão: a fábula do cachorro na manjedoura. Esta brevíssima anedota do sábio grego narra um cão imotivadamente agressivo que impede o gado de adentrar em seu próprio estábulo e comer seu merecido feno. Enxotado a pauladas pelo fazendeiro, apenas assim o cão cede. A moral da história, com leves variações em diversas versões e traduções, é arrematada por um dos bois, que diz “Vejam que vira-lata egoísta! Não come feno, mas também não deixa comer quem o pode apreciar”.

De fato, muito criticada foi esta “política de cão na manjedoura”, ou de “espírito nipônico” (em alusão ao fechamento do Japão ao Ocidente durante o Período Edo, encerrado em 1867 com o despertar da Era Meiji), como o próprio tenente americano também coloca nas conclusões de seus escritos. De certa forma, poder-se-ia dizer que ao invocar o direito internacional à navegação e ao comércio pelas águas do Rio Amazonas, por bem ou por mal, Maury retomou, em pleno Século XIX, o papel que Grotius havia exercido dois séculos antes na questão dos mares abertos. Isso, contudo, se seus interesses não estivessem teleologicamente maculados, afinal, Maury visualizava na Amazônia o local ideal para o transplante da economia escravista do sul dos Estados Unidos, caso os rebeldes confederados – em prol dos quais seria embaixador da causa durante a Guerra da Secessão americana – perdessem a batalha contra a União.

A abertura do Amazonas resultou de pressões externas e demorada discussão parlamentar. Enquanto pôde, o Governo Imperial brasileiro postergou tomar posição, mas acabou vencido tanto pelas reivindicações das nações vizinhas ribeirinhas, quanto pelo projeto do liberalismo econômico que o movimento global ascendente e irrefutável impunha.

Um rio, muitas rotas

Mapa da Bacia do Rio Amazonas. Fonte: Ministério dos Transportes / via Wikimedia Commons

A navegação fluvial de rios internacionais, compartilhados entre nações, é regulada tanto no plano nacional, enquanto exercício interno do poder de polícia, quanto no plano internacional, por meio dos instrumentos de negociação e consenso tradicionais entre nações: tratados, convenções, declarações etc. A estratégia hoje em voga nada mais é que uma conjugação das duas teorias que norteavam a matéria no início do Século XX: a doutrina Harmon, que principiou por consolidar o entendimento de que um Estado localizado em parte superior de um rio teria liberdade absoluta para navegar por águas inferiores, mesmo que adentrando em território alheio; e as regras de Helsinque, cunhadas em 1966 pela International Law Association, dando-se início a uma cultura internacional de uso equitativo e razoável de águas compartilhadas.

Numa realidade onde cerca de 9.8 milhões de pessoas e 3,4 milhões de toneladas de cargas (dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários referentes a 2017) dependem diretamente do transporte fluvial, é de se destacar o papel do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) na questão da navegação internacional, firmado em 03 de julho de 1978. Embora não seja exclusivamente voltado a nortear as relações internacionais a respeito da água, este Tratado é um marco na cooperação regional entre os países amazônicos, sendo um passo adiante para além das meras negociações bilaterais e pontuais, um efetivo compromisso multilateral de destacada importância.

Pactuado entre Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, o TCA reforça em seu art. 1º, o compromisso de “promover o desenvolvimento harmônico de seus respectivos territórios amazônicos, de modo que essas ações conjuntas produzam resultados equitativos e mutuamente proveitosos”. Já no art. 3º, os países amazônicos asseguraram entre si, “na base da reciprocidade, a mais ampla liberdade de navegação comercial no curso do Amazonas e demais rios amazônicos internacionais, observando os regulamentos fiscais e de polícia estabelecidos ou que se estabelecerem”.

Constituído por 28 artigos, o Tratado expressamente menciona os rios amazônicos em três situações: (i) artigo 3º, que garante a mais ampla e recíproca navegabilidade entre os signatários, nos termos dos regulamentos fiscais e de polícia internos a cada nação; (ii) artigo 5º, em que se reconhece “a importância e multiplicidade de funções que […] desempenham no processo de desenvolvimento econômico e social da região”, o que implica esforços à utilização racional dos recursos hídricos amazônicos; e (iii) artigo 6º, dispositivo que objetiva assegurar a eficácia dos rios amazônicos como vínculo de comunicação dos países amazônicos ribeirinhos com o Oceano Atlântico, o que impõe o compromisso de ações conjuntas para o “melhoramento e habitação dessas vias navegáveis”.

Outras passagens também tangenciam a questão da navegação, uma vez que tratam do aproveitamento racional da flora e da fauna, ou do equilíbrio ecológico da região, por exemplo. A cooperação entre os países que compartilham o território amazônico, em geral, e não só sob o viés econômico, é a palavra de ordem que no fim das contas mais se impõe.

As “profundidades” de que tratamos quando do tracejado histórico do mare liberum de Grotius a navegação pelo rio Amazonas, com suas questões de fundo, tanto são úteis para contextualizar a questão amazônica em sua amplitude contemporânea interdisciplinar, quanto para melhor compreender a formação do pensamento jurídico ocidental, em trajeto desde o direito das gentes até o direito internacional em si. São desdobramentos do mesmo episódio, que, remontando ao zarpar dos europeus em direção ao Novo Mundo, muito têm a depor na lide amazônica.

Se tentamos apresentar o texto com certo ar de interdisciplinaridade, com alguns gracejos de linguagem, em especial a de inserir a Amazônia num tribunal metafórico, isto se deve aos efeitos positivos e enriquecedores de tal abordagem, sem deixar de lado aspectos acadêmicos e profissionais. Admite-se que o vínculo afetivo mal gerido de um homem com sua terra natal é fator de estímulo contrário aos interesses científicos de esclarecimento e desenvolvimento. Assim, nacionalismo ou patriotismo são manifestações que, questionáveis quanto à sua legitimidade em discussões mais bem elaboradas, podem servir de sérios obstáculos a uma cultura internacionalizada de respeito mútuo e autêntica solidariedade. É nesse espírito que a observação isenta e pragmática, tendo em mente as evidências da história e as práticas comunitárias consolidadas, apenas há de contribuir para a aproximação e desenvolvimento conjunto das nações amazônicas.

É de se destacar que, em paralelo com as legítimas preocupações quanto aos aspectos biológicos ou sua inserção geográfica, a sociologia e a antropologia na Amazônia não são menos importantes do que suas irmãs, as ciências naturais. Não devem as ciências sociais, portanto, deixar de compor o quadro maior de investigações na Amazônia. Também o viés jurídico – enquanto ciência social aplicada, e instrumento apto a subsidiar qualquer abordagem interdisciplinar – é capaz de dar garantias mais plenas de realização e efetivação no sentido de dar voz e direito de voto à Amazônia no tribunal abstrato da vida pós-moderna, onde o modo de produção capitalista é juiz, o consumismo desenfreado é representante da acusação, e o corporativismo, em litisconsórcio com o extrativismo agressivo, é litigante de má-fé.

Com esperança sempre renovada ao nos depararmos com literatura cada vez mais alinhavada nas técnicas da inter ou da transdisciplinaridade, espera-se que nossas ideias aqui veiculadas possam servir de ponto de partida às ideias originais do leitor, ou ao menos de saudável inspiração para seus próprios escritos. Não faltam vieses pelos quais se apaixonar, ao alcance de naturalistas, historiadores, geógrafos, antropólogos, sociólogos e juristas, afinal, qualquer tratativa sobre o tema se apresenta multifacetada, o que apenas sustenta a existência de não apenas uma, mas de várias Amazônias, cada qual constituindo reflexo de um mesmo prisma, mas todas interconectadas entre si. Filhos da terra, ou amazônidas por adoção, mais do que nunca a Amazônia precisa de defensores obstinados.

 

Adriano Gonçalves Feitosa é mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA/UFAM). Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
Imagem em destaque – A Amazônia Legal é uma área que engloba nove estados do Brasil pertencentes à bacia Amazônica e à área de ocorrência das vegetações amazônicas. O governo federal, reunindo regiões de idênticos problemas econômicos, políticos e sociais, com o intuito de melhor planejar o desenvolvimento social e econômico da região amazônica. Imagem: Imazon.
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