Fronteiras da Amazônia Sem Fim

Amazônia
Cardiff University

A Amazônia precisa ser repensada. Ou talvez, antes de mais nada, precisemos defini-la. Afinal, do que tratamos quando se fala de Amazônia, com ‘A’ maiúsculo e tantas imagens na mente? Não seriam ‘amazônias’, no plural, para reconhecer as situações específicas das muitas localidades, onde vive gente com nome e sobrenome, passado e futuro? Ou é mais importante enfatizar as tendências regionais e os problemas compartilhados por todos os países amazônidas? Que Amazônia é essa e quem pode responder?

Parece incrível que, depois de mais de 500 anos de narrativas superlativas de inúmeros viajantes, curiosos e exploradores, após tudo o que já aconteceu – conquista, Cabanagem, borracha, Zona Franca, Transamazônica, Jari, Tucuruí, genocídio, desmatamento, mais barragens, muito fogo, e a lista continua – ainda se trate da Amazônia como uma vasta área com problemas pré-definidos, pessoas inertes e questões a serem decididas bem longe, em São Paulo, Washington ou Pequim.

Podemos buscar inspiração nos textos clássicos e afirmar: um ‘espectro’ ronda a Amazônia – o espectro da ignorância sobre quem e o que se examina.

Professores e cientistas são igualmente culpados, ao reproduzirem a velha máxima de uma Amazônia rica, opulenta, mas incapaz de se reconhecer e se administrar. Tanto se ensina, mas pouco se aprende. Às ideias coloniais de catequese e sujeição dos povos originários, acrescentaram a demarcação dos limites, ações de segurança nacional e planos de desenvolvimento, sempre olhando a Amazônia como um parente rico distante, incapaz, mas frágil e benevolente.

Em meio a uma cacofonia estabelecida pela arrogância de ignorantes daqui e de alhures, duas linguagens se sobressaem: de um lado, a fala miúda de quem vive, escapa e resiste o dia-a-dia, a grande maioria da população que enfrenta tantas carências, distâncias e poderes. De outro, a verborragia de quem se acha poderoso, senhor das riquezas e sempre apto a decidir, ainda que seja para beneficiar os mesmo de sempre, ao invés de fortalecer uma ‘democracia à amazônica’.

Pela força desse segundo discurso, trataram de construir bem rápido e sem parcimônia Belos Montes e Jiraus, rodovias e portos de exportação, como também abrir desertos para soja e pasto, organizar mercados de carbono e ecoturismo, esvaziar o eixo político da problemática ambiental, e criticar todo aquele que questione a miragem do desenvolvimento-maravilha… Não é somente mitologia das amazonas gregas que povoa a fantástica submissão da Amazônia aos interesses alheios, mas se apresentam os impolutos súditos do Rei Erisícton, que com sua fome devoradora, terminou por prostituir sua filha e consumir a si mesmo…

Questão tão urgentes e fundamentais como essas serão discutidas em Tabatinga e Letícia entre 3 e 5 de junho no “Seminário Internacional de Ecologia Política: Justiça SocioAmbiental e Alimentar no Noroeste Amazônico”, organizado pela Universidade de Cardiff, Universidade do Estado do Amazonas, Universidade Nacional de Colômbia e Universidade Federal de Mato Grosso, entre diversas outras universidades, organizações e associações indígenas parceiras.

A iniciativa é parte de uma série de atividades organizadas pela Rede Agroculturas e contará com palestras de especialistas nacionais e internacionais (de Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, México, EUA e Reino Unido), apresentações de trabalhos acadêmicos e, mais importante ainda, mesas de debate com representantes da sociedade civil, setores econômicos e poder público. Os participantes da Rede Agroculturas entendem agricultura e uso do solo como processos simultaneamente físicos, culturais, sociais, ambientais e políticos, através dos quais identidades são formadas e justiça ou injustiça socioambiental pode ser percebida.

O evento será, basicamente, um fórum questionamento crítico de questões ambientais e soberania alimentar em áreas socioeconômicas periféricas e regiões marginais onde o desenvolvimento, como tradicionalmente definido, ainda está nos estágios iniciais. Essas periferias constituem novas fronteiras para o desenvolvimento econômico e, tipicamente, revelam uma desconcertante combinação de mudança e continuidade. A fronteira é percebida como um espaço onde as coisas ‘como deveriam ser’ ainda não aconteceram ou aconteceram completamente.

Crucial compreender que, como as fronteiras socioespaciais emergem, principalmente, para mitigar e amenizar os problemas e insuficiências que caracterizam os centros político-econômicos de onde as pessoas, o capital e as instituições se originaram, as fronteiras são caracterizadas por obsolescência embutida nas esperanças de renovação.

Esse é o paradoxo essencial, entre muitos outros, da gênese das fronteiras econômicas: o espaço fronteiriço está repleto de oportunidades e possibilidades, mas, na maioria dos casos, proporciona apenas sonhos e expectativas natimortos. O futuro é anunciado, mas a realidade da experiência frustra a maioria dos envolvidos, deixando que qualquer meta não cumprida seja transferida para a próxima fronteira disponível.

No caso paradigmático da Amazônia, o reducionismo técnico-burocrático determina a transição do extrativismo para um agronegócio e uma indústria convencional que não leva em conta os interesses e conhecimentos dos grupos sociais que conhecem a região melhor que ninguém.

Nossa expectativa é a de que os debates durante o evento em Tabatinga e Letícia proporcionarão uma reflexão profunda que venha a apontar caminhos novos para pensar, e mesmo redefinir, a Amazônia. Um debate sério sobre desenvolvimento, conservação ambiental, igualdade socioeconômica e política, entre outros temas regionais, tem relevância universal e ecoa por todos os cantos do mundo.

 

Mais detalhes sobre o  programa em: https://www.agrocultures.org/event/leticia-tabatinga
Para fazer a inscrição gratuitamente você pode entrar em contato através do email: [email protected]

 

Antônio A R Ioris, professor da School of Geography and Planning, Cardiff University, coordenador da Rede Agroculturas  ([email protected])
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