O espaço da dor e a sonoridade do discurso: sobre Amazônia, Bembelemedo, Miraltamira, de Paulo Vieira

Paulo Vieira
Altamira, 05/09/2015 - Belo Monte - Bairro da periferia de Altamira em processo de demolição porque será alagado pelas águas do rio Xingu, em consequência da construção da hidrelétrica de Belo Monte. Foto: Lilo Clareto
Considerações sobre questões socioambientais nos versos do poeta Paulo Vieira

Amazônia, Bembelemedo, Miraltamira

Amazônia – verão, inverno – sempre o mesmo inferno
outono, não tem primavera, já era
por aqui toda esperança desespera

morto, sob tuas mangueiras
te vejo bembelelém no além

trinta mortes pra vingar a morte
trinta e uma e
tantas desgraçadas filhas pequenas da morte

breve parada em breves
rumo à guiana anas marias janalices
dez reais ou menos dez anos ou menos

tantas devastadas famílias mortas
de medo

mira alta ira alma tira tara ama lama a l t a m i r a ira ira

no campo na selva na cela no curral no planalto no barraco
no meio fio no asfalto na piçarra na puaca na pssíca

na mata na quebrada no ruc na barragem

e na aldeia a ideia do refrí comprado na Djalma
na sete de setembro

de toras o caminhão na tora rompendo auroras
no sangue da madrugada na emboscada

na mala do carro preto
no pneu
do carro prata
na ponta da faca
na bala
na bala
na bala
bembelemedo

miraltamira

o pobre bebe a lama
na vala
onde a morte o empurra de cara

arame farpado enrolado em pescoço de posseiro

fazendeiros-madeireiros-sojeiros-pistoleiros
matam a irmã de notre dame, prendem o padre
em nome da latifundiária moral

e em nome de deus, matam e desmatam, mentem e desmentem
desmatam, matam, desmentem, mentem, desalmadamente, amém !

amém, vos digo,
altamira bembelemedo,
amazônia – verão, inverno – sempre o mesmo inferno
outono, não tem primavera, já era
por aqui toda esperança desespera

A violência sempre foi a linguagem dos mais fortes sobre os mais fracos. O uso dos armamentos por alguns construiu a ideia de “fracos” e “fortes”. Só há “fracos” porque os “fortes” os subjugam. Em algum mundo que entenda que não há necessidade de domínio, mas de igualdade, ou, ao menos, de compreensão de alteridade, haverá respeito às diferenças culturais, pessoais e coletivos.

Não há mundos perfeitos. O Brasil não é perfeito. A Amazônia não é perfeita. Isso é mostrado por imagens, fatos e palavras. Há uma construção discursiva sobre uma região bárbara, infernal e inexplorada que se dá desde o primeiro texto sobre a Amazônia, quando Carvajal vê mulheres guerreiras à beira do grande rio. Ao percorrer essa linha de raciocínio, no começo do século XX, Euclides da Cunha, escritor e jornalista brasileiro, mantém e reforça o estereótipo ao afirmar que a Amazônia é a “última página, ainda a escrever-se, do Gênesis”

Ana Pizarro , Professora e Pesquisadora chilena, destaca a especificidade dos discursos escritos sobre a região, “a Amazônia é uma região cujo traço mais geral é o de ter sido construída por um pensamento externo a ela. Ela tem sido pensada, em nível internacional, através de imagens transmitidas pelo ideário ocidental, europeu, sobre o que eles entendem ser de sua natureza”.

Tzvetan Todorov, filósofo e lingüista búlgaro, no texto A conquista da américa (2003) apresenta um importante dado acerca da chegada dos europeus à América: a existência do outro. Para o europeu, o contato com a América é de uma estranheza completa e a problemática da comunicação mantém o alijamento e a estranheza: às vezes, os indígenas são dóceis (antecipando a visão do bom selvagem do Séc. XIX) ou bárbaros (pelas práticas culturais distintas). Como não há pretensão de entender este outro, o europeu o subjuga. O ideário ocidental dizima os povos nativos, porque não os compreendem. Além disso, exploram o espaço como se tivesse seu beneplácito, movimento no qual perdura ao longo dos séculos. Pela incompreensão de certas práticas culturais, o europeu impõe a cultura dele próprio como sendo a legítima. A partir desta postura, ele considera-se superior aos outros que apresentam costumes e hábitos distintos ao dele. O pensar incompreensível “mundo” do outro é o que faz o Europeu se sentir autorizado a dizimar ou escravizar populações, além de explorar e devastar os espaços.

Ilustrando a ideia apresentada, o poema de Paulo Vieira Amazônia, Bembelemedo, Miraltamira, traz ao leitor uma consciência clara desse movimento: choque cultural – violência – construção discursiva – resistência.

Lago formado pela represa de Belo Monte em Altamira. Foto: Lilo Clareto

Composto de forma circular, os versos do início voltam a aparecer no final. O poema apresenta as estações do ano que se repetem. Chuva e calor aparecem alternados, conhecidos como infernais conforme o poeta. Essa ideia da circularidade natural vem sugerida nos versos que se repetem ao iniciar e fechar o poema.  A natureza funciona em ciclos que não surpreendem. O que causa impacto no leitor é o contraste entre as palavras selecionadas na sequência, como pode ser visto no verso “toda esperança desespera”. Ao constatar que são essas as últimas palavras do poema, constrói-se uma rede de sentidos que permite entender, desde o início, a oposição entre a natureza imutável, imponderável e a cultura, produtora de sentidos a partir de uma estrutura aparentemente cíclica também.  A mesma observação sobre a natureza que se repete em ciclos serve para entender que há uma estrutura de sociedade que produz “desesperança” a partir da passividade da esperança. Perceba-se que a plurissignificação da justaposição dessas palavras conduz o leitor a entender que a estrutura denunciada de uma sociedade violenta e injusta, também é imutável e imponderável. Esperar é uma ação passiva/pacífica; do verbo deriva o substantivo esperança, palavra que, de certa forma, reitera a passividade. Se a própria esperança desespera, deixa de esperar, por um lado, e descontrola a espera, por outro, como haver uma quebra desse ciclo?

“Mira alta ira alma tira tara ama lama a l t a m i r a ira ira”: aliterações e assonâncias, que significa mais do que brincar com a palavra Altamira, revelam também o descaso com as populações tradicionais e indígenas. Para isso, ecoa os versos “mira ira raça tupi/ matas, florestas Brasil”, da música Mira ira, do Festival dos Festivais de 1985. O redirecionamento de grupos sociais aos “reassentamentos urbanos coletivos” revela que não importa aos detentores do poder e do capital “tantas devastadas famílias mortas/de medo”, pois elas podem ocupar área devastada.

“Bembelelém no além” se refere ao sino que apresenta a morte de trinta pessoas da periferia, em Belém, para vingar a morte de um soldado. A denúncia do tráfico de jovens e crianças é feita através do verso “rumo à Guiana anas marias janalices”. Essa desesperança anunciada e denunciada não atinge qualquer grupo social, pois os fazendeiros-madeireiros-sojeiros-pistoleiros oprimem através da institucionalização da violência, como é possível compreender nos versos: “arame farpado no pescoço de posseiro”; “matam a irmã de notre dame, prendem o padre em nome/ da latifundiária moral”. A divisão dos grupos fica clara que de um lado há os defensores da “latifundiária moral” e, do outro, o “pobre [que] bebe a lama/ na vala/ onde a morte o empurra de cara”. Denúncia de devastação, desmatamento, emboscadas, desmoralização, morte física e assassinato moral dos que protegem estão presentes em um dos lados. Enquanto do outro, impunidade, caminhões carregados de madeira, populações desalojadas e amontoada na periferia, novas lógicas de desigualdade e exploração.

Paulo Vieira constrói um poema cujos versos brincam com a sonoridade inerente à poesia e que cumprem a sua função precípua. Como nota Theodor Adorno em Lírica e Sociedade, denunciar e constituir-se em “protesto contra um estado social que todo indivíduo experimenta como hostil, alheio, frio, opressivo […] A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação de mercadorias sobre homens”.

Em tempos sombrios como os que agora assolam o mundo, entender a poesia como um manifesto em defesa de um espaço ou grupo social é fundamental para o processo de resistência à violência e à opressão para a construção de outro discurso sobre a Amazônia.

 

Nícia Zucolo  é doutora em Letras – Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), e mestre em  Sociedade e Cultura Amazônica pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Também é professora de literaturas de língua portuguesa da UFAM, desenvolve pesquisa sobre os seguintes temas: literatura contemporânea em língua portuguesa, pós-colonialismo, totalitarismo, violência e gênero, gênero, relações entre ficção, história e memória.
Paulo Vieira é professor na Faculdade de Etnodiversidade, Curso de Educação do Campo, da Universidade Federal do Pará (UFPA-Campus Altamira), Doutor em Literatura Brasileira (USP), Mestre em Populações Tradicionais da Amazônia (UFPA) e Engenheiro Florestal (UFRA). Publicou os poemas de “Infância Vegetal (2004)”, “Orquídeas Anarquistas” (2007), “Livro para pescaria com linha de horizonte” (2008), “Pablo no mundo das nuvens” (2017) e mais quatro livros..
A foto em destaque foi tirada em Altamira (PA), em 5 de setembro de 2015, por Lilo Clareto. Nela podemos ver um bairro da periferia da cidade em processo de demolição porque será alagado pelas águas do rio Xingu, em consequência da construção da hidrelétrica de Belo Monte.
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