Leandro Tocantins: tradição e modernidade

Fruto de extensa pesquisa, livro de professor da UFAM esmiúça a Amazônia de Leandro Tocantins

Foto: divulgação.

Resultado de um arcabouço de pesquisa que culminou com sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, o livro de Odenei Ribeiro, professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas e do Programa de Pós-graduação onde se doutorou, apresenta-nos uma radiografia importante sobre a Amazônia pensada por Leandro Tocantins – o paraense acreano autor de importantes obras, entre elas a entremeada de poesia e recorte científico O rio comanda a vida, descrito por Ribeiro como um manifesto amazônico, e Amazônia: natureza, homem, tempo, cujo intuito é interpretar a história da Amazônia a partir do ponto de vista ecológico mediante as ideias de Gilberto Freyre. Entre outras obras que o tornaram astro de uma constelação de pensadores regionais influentes e um ativo sujeito político. Tocantins elegeu a Amazônia como foco de ilustração em que articula conhecimento, missão e desafio nacional, conforme descreve Marilene Corrêa, no prefácio Pensamento social na Amazônia: visões de mundo para além da reflexão imediata.

Ao discorrer sobre o que considera Tradição e Modernidade em Tocantins, Ribeiro destaca que ambas não são produto da mente de um indivíduo isolado, mas a resposta de um grupo a respeito da permanência e da mudança que põem em risco seu destino. Aponta como tese a ideia de que o elo entre tradição e modernidade é a cultura, meio de transposição entre a essência do valor criado no passado e sua transformação moderna em valor novo, em tempos que exigiam mudança e permanência. Ciente do arcabouço teórico denso que lhe impôs o desafio de analisar o pensamento de um homem singular como Leandro Tocantins, Odenei Ribeiro busca alinhar suas considerações a partir de outros intelectuais que trilharam os caminhos dos tempos diversos como trilhou Tocantins, conforme discorre no primeiro capítulo “O trópico úmido e os intelectuais”. Ao tratar sobre a modernização de Belém e Manaus, as duas metrópoles que rivalizavam no período áureo da borracha, e em cujo fio estabelece diálogo entre as ideias de Araújo Lima, Arthur Cézar Reis e Djalma Batista, sem deixar escapar o comparativo entre o visionário Eduardo Ribeiro (Manaus), e Antônio Lemos (Belém), também não dispensa recorrer, em certos espaços, aos tantos outros intelectuais de monta clássica, como Weber, Mannheim e Bourdieu a quem faz referência em todo o livro para ratificar suas considerações.

Para Odenei, foi preciso identificar o sistema de relações sociais influentes, de cunho literário e político, que permitiram a Leandro Tocantins elaborar determinadas concepções de fala e escrita cifradas em suas obras no lenho da cultura e da política como homem público e influente que foi. Não era possível deixar escapar a recuperação dos momentos da vida do intelectual, que saiu de Belém para embrenhar-se no seringal na foz do rio Muru, no Acre, e depois no Rio de Janeiro, onde teve contato com nomes das cenas jurídicas de importante calibre, descritos em seus registros memorialísticos. Isso foi feito através de uma narrativa que percorre a vida de Tocantins, da infância à adolescência, através mundo acadêmico e principalmente do homem público com forte influência católica e formação espiritual que percorre os rios do Acre ao Pará – destaques recuperados por Ribeiro no segundo capítulo.

Os caminhos percorridos por Tocantins – ou as viagens que atravessam as nossas vidas e atravessaram a vida de Tocantins, conforme nos faz pensar Octavio Ianni –, da literatura de ficção aos clássicos da filosofia, e das ciências jurídicas com que teve contato durante adolescência e juventude amadurecida na vida acadêmica, alicerçam as bases da vida do intelectual, cujas ideias são colocadas no capítulo “Leandro Tocantins e o nacional desenvolvimentismo”, onde Ribeiro apresenta informações que remontam à sociedade brasileira e, de certo modo, nos fazem conhecer o perfil do intelectual e homem público quando no exercício de várias funções das esferas públicas nacionais, colocando a Amazônia nos debates a que se assistiam no Brasil dos anos sessenta sobre a modernização da sociedade brasileira nos vários espaços – político, econômico, cultural. Para o pensador, a Amazônia não poderia ficar de fora. Leandro passa a figurar nos espaços da política brasileira, e bem antes, em 1952, dá-nos a conhecer “O rio comanda a vida”, escrito num período em que as discussões sobre a integração da Amazônia às demais regiões estavam em pauta. Nesse meio tempo, estreita sua amizade com Arthur Cezar Reis, de quem se torna auxiliar na recém-criada Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA).

Seringal Foz do Muru, local onde viveu Leandro Tocantins. Ilustração em nanquim e bico de pena por Percy Lau. Fonte: blog Alma Acreana.

Ao percorrer a vida do homem público e intelectual Leandro Tocantins, Odenei Ribeiro traça um importante leito não somente sobre as ideias que asseguraram o destaque de Tocantins nas cenas públicas brasileiras, mas também por meio de quais vias chegou a elas. Fincam-se, nesse contexto, os movimentos culturais regionalistas que influenciaram o pensamento de Tocantins, conforme se lê no quarto e último capítulo, Tradição, cultura e modernidade, em que Ribeiro confirma a sua tese ao assegurar que o elo entre tradição e modernidade é a cultura. Remonta à tradição como um conjunto de situações que perfazem os caminhos pelos quais Tocantins foi de Belém ao Acre, tornou à Belém e seguiu para a capital federal, o Rio de Janeiro, desembocando na modernidade, no conjunto de mudanças políticas e sociais, principalmente aqueles que influenciaram nos modos de ver e pensar o Brasil e a Amazônia, eleita por Tocantins como alvo intransigente da sua defesa.

A obra de Odenei não deve ser confundida com uma biografia intelectual-política de Leandro Tocantins, ou mesmo como a conclusão de uma tese de doutorado – ela abarca um conjunto de informações e conjuga mais de uma década de pesquisa feita pelo autor. Embora a intenção seja mostrar como a tradição e a modernidade se fundam no contexto do pensamento de Tocantins, discorrendo sobre os vários aspectos da vida do intelectual, soma-se nele um labirinto de informações sobre a sociedade nacional, conforme visto no prefácio, além de revelar um conjunto de informações que parte do Brasil para a Amazônia e da mesma para as Amazônias que Tocantins, assim como outros tantos de sua época, percorreram e tentaram compreender a seu modo.

Se a Amazônia vivida por Tocantins carecia de visibilidade – somente no final da década de 60 começam os movimentos mais densos para a interligação da região com a abertura de rodovias, a construção de portos e aeroportos – é certo que não faltaram vozes que a colocassem em evidência, seja na política, seja nos debates acadêmicos ou campo literário de ficção. E é, certamente, no espaço ficcional que encontramos uma rica abordagem sobre a Amazônia que Leandro Tocantins defendeu de maneira intransigente e na qual viveu suas experiências. E, para muitos homens das letras, a Amazônia não possui apenas vozes, ela encarna-se em cores, formas e vidas, muitas vidas que se metamorfoseiam em linguagens e narrativas como as que Tocantins nos legou ao longo de sua existência.

Odenei Ribeiro não apenas esclarece como o homem Leandro Tocantins trilhou caminhos enquanto cidadão que conheceu as margens dos rios e o interior das matas dos seringais, como também buscou fazer os percursos vividos pelo intelectual, e outros espaços nos quais fez ponte, para dar visibilidade à Amazônia e fazê-la conhecida pelo mundo, não somente como o paraíso selvagem ou o inferno verde como foi romanceada, mas principalmente como o território diverso, vivo, em movimento. Essa Amazônia que Tocantins desenha em Amazônia: natureza, homem e tempo, o faz nos seus pontos geográficos, econômicos, políticos e sociais, sem deixar escaparem as sutilezas da poesia.

Num conjunto de informações que levam o leitor às várias fontes que o conduzem aos ambientes familiares, culturais e políticos vividos por Tocantins, o pensamento do autor converge aos meandros do pensamento social brasileiro – chega-se ao intelectual, ao homem das letras e ao defensor de uma Amazônia do homem ordinário, homem comum, como teoriza Michel de Certeau, que transita entre as matas do mito e da realidade, num território onde o rio ainda comanda a vida.

Tradição e modernidade no pensamento de Leandro Tocantins é um apanhado importante sobre o pensamento social da Amazônia, é um feixe de representações da inteligência que deságua no pensamento de Tocantins, como bem nos lembra Corrêa. Na visão de Odenei Ribeiro, exposta no livro, “o pensamento social de Leandro Tocantins desvela e oculta os modos como as sucessivas gerações enfrentaram os desafios, os problemas e as questões que moldaram a cultura, as identidades, as representações sociais, as instituições e o modo de vida que nos é peculiar”.

Você pode encontrar o livro Tradição e modernidade no pensamento de Leandro Tocantins no site da editora Valer.

 

Joaquim Barbosa é Licenciado Pleno em Letras, Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor de Língua Portuguesa e Comunicação e Português Jurídico, do Centro de Estudos Sociais Aplicados – CESA, das Faculdades Integradas do Tapajós. Joaquim também é  editor responsável pela Revista Somanlu – Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia.
Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Translate »