O impacto da Cargill nas comunidades de pescadores do Rio Tapajós

Porto de escoamento de soja da Cargill, em Santarém. A multinacional norte americana está presente nos cinco continentes do mundo, e é a maior exportadora de soja no Brasil. Crédito: Amazônia Latitude.
Em relato à Amazônia Latitude, César fala sobre as mudanças decorrentes do porto da empresa norte-americana em Santarém

No ano de 1999, a Cargill comemorava o sucesso da licitação que lhe dava o direito de construir um porto na praia de Vera-Paz, em Santarém (PA). Naquele momento, a chegada do investimento externo era bem vista pela sociedade santarena, que acreditava que o empreendimento traria renda e desenvolvimento para a cidade. O porto, que começou a operar efetivamente em 2003, se mostrou uma promessa vazia – o astronômico desenvolvimento econômico que a região esperava não aconteceu. A empresa chegou aenfrentar acusações de omissão de estudos de impacto ambiental e social a partir do o ano 2000. E ao  publicar o Relatório de Impacto Ambiental ( RIMA), em 2010, foi acusada de fraudar o estudo por trazer informações inverídicas com a intenção de mascarar efeitos negativos inerentes à produção de soja.

Aproximadamente duas décadas depois, o pescador César* fala sobre os impactos da Cargill na sociedade santarena. Segundo ele, a transformação mais expressiva foi a perda da praia de Vera-Paz, antigo ponto turístico e fonte de lazer para os moradores da cidade. “Depois que a Cargill veio para cá, essa praia acabou, sumiu”, relata César, que conduz um pequeno barco enquanto mostra a margem abandonada que costumava ser uma das principais praias da cidade.

O pescador também fala sobre o resíduo da soja, que se transforma em grandes cortinas de poeira tóxica nos embarques e desembarques dos grãos nos portos da Cargill, o que afeta não apenas os pescadores como ele, que dependem do Tapajós para retirar seu sustento, mas também as famílias que vivem próximas à região portuária. “As pessoas deviam estudar bem o impacto que uma empresa dessas traz para a cidade, né? Porque de benefício mesmo para nossa região ela não trouxe nada. Até principalmente, os funcionários dali – a maioria é de fora, não tem funcionário da região. Os funcionários da região são só aqueles para abrir portão, fechar portão, mas de alto escalão aí dentro não tem. Vem tudo de fora”.

Meio ambiente

Em mais de uma ocasião a Cargill foi pressionada por órgãos ambientais, como o Ibama, para que encerrasse as atividades do porto de escoamento de soja por conta do alto impacto social e ambiental. A empresa, que demorou a apresentar um estudo de impacto para a região, foi impedida de operar em várias ocasiões em decorrência dessa irregularidade – a primeira vez em 2007, quando foi condenada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região a paralisar suas atividades até que o EIA-RIMA,  desde então omisso, fosse apresentado e executado; em 2010 foi punida pelo Ministério Público por fraudar o mesmo relatório; e em 2018 foi multada pelo Ibama junto de outras empresas por fomentar o desmatamento no Cerrado através da colaboração com a produção ilegal de soja na região. Entre outras questões, a multinacional promoveu um êxodo de produtores sulistas em direção à região de Santarém em uma corrida pelo mercado da soja. Dessas questões surgiram outros problemas, como a expropriação de terras de pequenos produtores para dar lugar a campos de soja. Essa atividade muitas vezes é feita sob ameaças de morte e outras consequências para quem se recusar a abandonar sua terra, prática conhecida com grilagem.

Para César, a Cargill responde por mudanças drásticas e irreversíveis em seu modo de vida. Pescador no Tapajós por décadas, relata que isso se tornou inviável depois das transformações promovidas pelo porto. Primeiramente, pela escavação das margens do que costumava ser a praia de Vera-Paz, que precisavam de mais profundidade para que os navios pudessem atracar, o que levou os peixes que circulavam por aquela região deixassem o local. Outro fator determinante é o impacto do resíduo da soja nos pescadores que ali trabalham sem o uso da proteção necessária para minimizar os efeitos dos agrotóxicos na atmosfera. “Porque não usa óculos, não usa proteção, e aquilo quando vem no olho…. Conheço um rapaz que, esses dias mesmo, tava me dizendo “rapaz eu não enxergo mais nada aqui”. Não tem como. Baque do resíduo da soja”, revela César.

Pesca no Tapajós

Antes da instalação da Cargill, César lembra como era simples a vida de pescador. Ele fala que a uma década atrás havia muita fartura, que em apenas um dia podia garantir o sustento da semana. “Dez anos atrás, você descia aqui na beira do rio para pegar um peixe, bastava trazer uma redinha de cinquenta metros, vendia peixe igual vendia”. Hoje em dia é cada vez mais difícil para o pescador sobreviver sem assistência social, a pesca já não basta. Se antes contava com certa estabilidade em sua profissão, agora sai todo dia em busca do peixe cada vez mais escasso e, quando consegue, recebe apenas 100R$ dos mercados da cidade por tudo o que consegue pescar durante a semana.

O caso de César é apenas um nó no emaranhado de problemas pelos quais passam os povos tradicionais de Santarém. Como outros, viu seu modo de vida ser solapado aos poucos pela Cargill, viu os peixes deixarem os leitos de Santarém e seus colegas de profissão amargarem com complicações financeiras e de saúde com o passar dos anos.

“O nosso sindicato está meio desorganizado nessa área, mas os pescadores, as pessoas que pescam mesmo, que são envolvidas diretamente, estão pensando como é que vai ser. Porque eles fechando lá, a água do Amazonas, a tendência é ela entrar aqui dentro do Tapajós. Então vai acabar com toda essa região aí – praia, hotéis do chão, tudo isso aí vai atingir. Mas a gente espera que haja solução, principalmente esse resíduo da Cargill aí, ele é muito forte, eu vou te dizer uma coisa”.

Apesar dos impactos causados no ecossistema, no estilo de vida e saúde dos povos tradicionais, os governantes de Santarém estudam a construção de mais um porto de escoamento de soja, dessa vez da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps), alicerçada nas mesmas promessas trazidas pela Cargill em 1999. A Embraps visa a construção de seu porto na região do Lago do Maicá, onde vivem 1.500 famílias de ribeirinhos e uma vasta gama de espécies de peixes, aves e microrganismos ameaçados pelo puro interesse econômico.

 

*César – a Amazônia Latitude, em respeito ao pescador, manteve seu nome e outras informações ocultas para preservar sua integridade física e moral.
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