O Antropoceno: vantagens e desvantagens de uma ideia epocal

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Como seria imaginar o Homo sapiens não como um mero ator histórico, mas sim geológico, uma força de tamanha magnitude que resulta em nossos impactos serem de fato gravados em registros fósseis? Como seria reconhecer que, pela primeira vez na história do planeta, uma espécie senciente, a nossa, abalou o sistema vital da Terra de tal forma que o paleontólogo Anthony Barnosky compara esse feito a um impacto de asteroide?  Como essas mudanças de perspectiva poderiam afetar premissas consolidadas sobre a nossa história, ética, poder e responsabilidade?

Tais perguntas se tornam pertinentes com a virada para o Antropoceno, uma hipótese desenvolvida pelo químico atmosférico ganhador do prêmio Nobel Paul Crutzen e pelo ecologista Eugene Stoermer em 2000. Eles argumentam que o Holoceno já ficou para a história: a Terra entrou em uma nova época geológica sem precedentes, desencadeada pelas ações humanas.

Crutzen e Stoermer datam essa ruptura ao começo da revolução industrial no final do século XVIII. Assim, de acordo com o domínio do roteiro antropocênico, ao longo de pouco mais de dois séculos, um arquivo perene dos impactos das ações humanas sobre os sistemas geofísico e biofísico da Terra tem sido gravado em pedra por nós. Tais impactos de longo prazo se tornaram particularmente intensos desde os anos 50, durante a chamada Grande Aceleração.

Nós alteramos radicalmente o ciclo do carbono, o ciclo do nitrogênio e a taxa de extinção das espécies. Criamos isótopos atômicos sem precedentes e plásticos fossilizados. Erigimos megacidades cujos rastros perdurarão ainda por muito tempo após deixarem de servir como cidades. Nós mudamos o pH dos oceanos e alteramos tantas formas de vida ao redor do mundo — inadvertida e intencionalmente — que estamos criando ecossistemas fora do comum por toda parte. Sobre a vida terrestre vertebrada, humanos e seus animais domésticos constituem agora mais de 90%, sendo menos de 10% composto por animais selvagens.

O derretimento da Groenlândia. Fotografia de Anne McClintock.

Quando Crutzen e Stoermer desenvolveram essa hipótese, eles não poderiam imaginar a ideia imensa e voraz que ela se tornaria. Levou algum tempo, mas já na segunda década do milênio aqueles que ficaram perplexos e fascinados pela ideia do Antropoceno foram engolidos, massiva e pluralmente, por suas assombrosas entranhas.

Céticos e entusiastas reunidos em abundância vindos da paleobotânica e dos estudos pós-coloniais, da nanotecnologia e da bioética, da egiptologia, da robótica evolucionária, da psicologia feminista, geofísica, agronomia, pós-humanismo e estudos druídicos. Os classicistas lado a lado com os futuristas, juntando-se a estudantes de tudo o mais, de plastiglomerados a prosódia romântica, de ruínas a renaturalização.

Isso é seguramente o destaque mais profícuo da virada antropocênica: a infinidade de trocas estimuladas ao redor do mundo, da vida científica, das ciências sociais, das humanidades e das artes, convocando um diálogo entre estudiosos instigados a saírem da bolha de suas especialidades para se engajarem energicamente com interlocutores não habituais. As humanidades e as artes, como era de se esperar, tiveram um papel vital nesse diálogo tão misto. Uma vez que a hipótese do Antropoceno abala a própria ideia do que significa ser humano.

Se coletivamente somos um amontoado de rochas que se move e sente, o que isso significa para as histórias que contamos sobre a nossa espécie e nosso lugar na vida na Terra? O que isso significa para a ética nas ações humanas? Quais seriam as pressões imaginativas e emocionais ao se introduzir o humano em escalas temporais geológicas? Simplesmente não estamos acostumados — ou sequer preparados — a conceber as consequências das ações humanas ao longo de tão vasto e expansivo espaço de tempo. Como podemos começar a internalizar nossa parte enquanto atores antropocênicos de modo a representar esse papel satisfatoriamente?

Para tais conjecturas é necessário adicionar outras que são políticas. O Antropoceno — muitas vezes com razão — tem se provado significativamente controverso. Foquemos em algumas discordâncias cruciais. Primeiramente, quais ganhos e perdas advém com a adoção da perspectiva de espécie global do Antropoceno sobre o ser humano? Pode esse ponto de vista épico correr o risco de suprimir — tanto historicamente quanto no presente — impactos humanos desiguais, atividade humana desigual e vulnerabilidades humanas também desiguais? Colocar sob a marca humana do século XXI, na mesma medida, um liberiano e um estadunidense regulares, enquanto agentes de mudanças a nível planetário, poderia ocultar mais do que revelar?

Eis o desafio crucial à nossa frente: como levar em consideração duas histórias expressivas que podem frequentemente se apresentar em conflito, uma convergente e outra divergente? A primeira, uma narrativa coletiva sobre os impactos da humanidade que ainda estarão visíveis nos mecanismos geofísicos do planeta a milênios porvir. Já a segunda é uma narrativa muito mais fragmentada, uma vez que se emergiu o meme do Antropoceno durante o século XXI, um período em que a maioria das sociedades humanas experienciaram um aprofundamento no abismo entre os super-ricos e os ultrapobres. Em termos de história das ideias, o que significa o Antropoceno, enquanto uma grande e explanatória história de espécies, passar-se durante uma era plutocrática? E de uma perspectiva criativa, como nós podemos contrapor a força centrípeta da trajetória das espécies antropocênicas dominantes com a trajetória centrífuga que assume tamanhas desigualdades no poderio que é capaz de provocar mudanças no planeta (sem mencionar as desigualdades no acesso a recursos e a exposições ao risco em tempos de disparidades tão profundas)? Todos nós estamos no Antropoceno, mas não estamos todos da mesma maneira.

Uma segunda controvérsia separa os que podem ser chamados de otimistas de comando e controle do Antropoceno de outros que são céticos desse pensamento. Juntamente com aqueles, encontra-se o geógrafo Erle Ellis, que acredita que “nós não devemos encarar o Antropoceno como um momento de crise, mas como o começo de uma nova época geológica propícia a oportunidades de direcionamento humano”. Alinhados com ele estão os jornalistas científicos Mark Lynas (autor de The God Species) e Ronald Bailey, este que insiste que “com o passar do tempo, nós só podemos melhorar enquanto deuses guardiões da Terra”. Como mantra, esses otimistas antropocênicos citam a exortação de Stewart Brand: “nós somos como deuses e precisamos ficar bons nisso”.

Mas para outros, falar do Homo sapiens enquanto uma espécie divina, substitutos para a divindade na Terra, é preocupante. Não foi a arrogante mentalidade de autoridade terrestre, de domínio sobre a natureza, que nos colocou na atual e problemática posição enquanto atores geológicos? Ademais, o domínio terrestre invoca perturbadoras relações entre raças, gênero e classes hierárquicas das parcelas esclarecidas. Para o climatologista Mike Hulme, existe uma ligação direta entre tais pensamentos megalomaníacos e as irresponsáveis peripécias de um pequeno e poderoso grupo de geoengenheiros e seus bilionários financiadores que ambicionam “reiniciar o termostato global”. Ao que eu ainda gostaria de adicionar: não devemos igualar impacto planetário humano a controle planetário humano, não como uma possibilidade nem como um ideal. Da mesma forma, humildade diante das complexidades incalculáveis de uma Terra modificada aceleradamente não é o mesmo que quietismo.

Louisiana submersa. Fotografia de Anne McClintock.

A autora científica Elizabeth Kolbert tuitou: “duas palavras que provavelmente não devem ser usadas em sequência: ‘bom’ e ‘antropoceno.’” A filósofa ambiental Kathleen Dean Moore vai mais a fundo e sugere que o Antropoceno seria melhor se nomeado “Imperdoável cena do crime”.

A preocupação quanto às prepotentes reações para com o Antropoceno nos leva a uma terceira controvérsia. Estaria a própria noção de Era dos Humanos criando o risco de encorajar o narcisismo da espécie? Uma coisa é reconhecer que o Homo sapiens obteve poderes biomórfico e geomórfico massivos. Mas é inteiramente outra coisa fixar a tutela humana em um grau que minimiza o seu entendimento imperfeito de redes infinitamente elaboradas por ações não humanas, desde o microbioma até o movimento das placas tectônicas, que continuam moldando os sistemas vitais da Terra. Para ser mais exato, humanos — especialmente os mais abastados — possuem sim o poderio de alterar o planeta, mas nós não exercemos esse poder isoladamente de outras forças.

“Geologicamente, o Antropoceno é um episódio marcante na história do planeta”, diz o paleontólogo Jan Zalasiewicz. Mas o que começou como um debate científico orientado por dados sobre como mensurar e projetar as marcas humanas nos registros fósseis se propagou para praticamente todo campo acadêmico possível. O poder do Antropoceno — por vezes esclarecedor, exasperante, alarmante — não é redutível a métricas. Como observa a historiadora ambiental Libby Robin, “a questão é como as pessoas podem tomar responsabilidade e responder pelas suas ações no mundo. E a resposta não é simplesmente científica ou tecnológica, mas também social, cultural, política e ecológica”.

Ao final, estamos testemunhando a transição do Antropoceno de uma ideia interdisciplinar vigorosamente disputada para uma que está se difundindo pela esfera pública. Podemos atestar isso nas edições especiais sobre o Antropoceno das revistas The Economist, Nature e The Smithsonian. Vemos isso na maneira como blogueiros, cineastas, intelectuais de projeção e curadores tentam reimaginar, através do prisma do Antropoceno, o que a geógrafa Doreen Massey denomina “o primitivo manejo da vida e da pedra”.

Outorgar ao Antropoceno uma repercussão pública envolve escolher objetos, imagens e histórias que tornarão viscerais os tumultuosos processos geológicos que atualmente ocorrem em escala temporal humana. Nesse sentido, o Antropocene Cabinet of Curiosities Slam (ou O Gabinete de Curiosidades do Antropoceno, uma conferência realizada pelo Centro de Cultura, História e Meio Ambiente da Universidade de Wisconsin — Madison) elaborou uma variada gama de narrativas guiada por objetos. A exibição tem por objetivo fornecer uma maior proximidade do público com as imensas mudanças biomórficas e geomórficas. Coletivamente, essas narrativas antropocênicas têm o poder de inquietar e surpreender, com sorte nos incitando a novas maneiras de pensar e perceber o planeta que nós herdamos e o que nós legaremos.

 

Este texto foi publicado com o título The Anthropocene: The Promise and Pitfalls of an Epochal Idea, no site Edge Effects em 6 de novembro de 2014. A tradução foi feita por Rafael Andrade, formado em Letras Inglês pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Rob Nixon é Professor do Currie C. & Thomas A. Barron Família em Humanidades e Meio Ambiente. Também é afiliado do Princeton Environmental Institute nas humanidades ambientais. Ele é autor de quatro livros, sendo o mais recente Slow Violence and the Environmentalism of the Poor, ganhador do American Book Award e três outros prêmios. Contribui frequentemente com o jornal New York Times. Seus textos já foram publicados no The New Yorker, Atlantic Monthly, The Guardian entre outros.
Imagem apresentada é a escultura submersa “Anthropocene”, de Jason deCaires Taylor.
Foto de Jason deCaires Taylor.
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